07/07/2009

Manta de retalhos para a Praça do Comércio

In Público (7/7/2009)
João Mascarenhas Mateus

«O projecto de "requalificação" da Praça do Comércio que se encontra em discussão pública apresenta particularidades de método e de conteúdo sobre os quais importa reflectir.
A ideia de "requalificar", ou seja, de renovar uma praça que desde 1910 está classificada como monumento nacional constitui um erro de método. Um monumento nacional não se renova. Um monumento nacional protege-se, restaura-se, conserva--se na sua integridade física e simbólica.
Naturalmente que esta atitude prevista na lei deve acolher ocasiões como as criadas pelas recentes obras de infra-estruturas do subsolo, que implicaram o levantamento de grande parte da placa central, para estudar e intervir de forma modelar. Uma oportunidade pois para conhecer a imagem consolidada da praça que importa conservar e ao mesmo tempo definir as condições técnicas especiais a exigir à intervenção de reconstituição da unidade da sua imagem.
Como organismo de tutela, o Igespar deveria ter sido a primeira instituição a elaborar este estudo e a dar a conhecê-lo publicamente antes de qualquer proposta de intervenção. Um documento de base que limitaria à partida arbitrariedades de método e de estética. Ter-se-ia seguido a consulta e o concurso para o projecto de conservação.
Infelizmente, a posição do Igespar, longe de ser proactiva, tem sido reactiva. Limita-se a reagir a uma única proposta de um único arquitecto e à indignação de muitos cidadãos. Uma indignação que possivelmente é extensível a muitos técnicos do Igespar que regularmente não são solicitados ou não vêem nenhuma consequência prática dos seus estudos.
No conteúdo da proposta em discussão está prevista na placa central uma rede de losangos de pedra calcária que compartimentam alvéolos de brita de lioz e resina. Uma imitação asseptizada e higienicista da antiga terra batida que ali esteve durante séculos.
Se a premissa de restabelecimento do verdadeiro terreiro tivesse sido imposta previamente, não estaríamos hoje a discutir losangos, ou porque não círculos, ou ainda condicionamentos de fluxos, numa lógica ultrapassada de ordem e limites. A Praça do Comércio sempre foi atravessada em todas as direcções. Um espaço onde as pessoas se deveriam sentir livres de qualquer "encarneiramento" imposto de forma mais ou menos subliminar. Com esta solução impermeabiliza-se um dos corações de Lisboa e retira-se aos lisboetas mais uma oportunidade de contacto directo com a sua terra, num espaço que deveria ser de reencontro com a sua verdadeira essência de cidade. O que diriam os franceses se lhes impermeabilizassem a terra batida da Praça Bellecour em Lyon ou o Jardim das Tuilleries, em Paris?
No perímetro, prevê-se ainda reconverter com um desenho "mikado" de pedra vermelha e negra o aumento do lajedo na zona das arcadas para receber mesas e bancos corridos de esplanadas. Uma solução que recorda esteticamente o que se fez nos "paseos maritimos" de Espanha ou em qualquer parque de exposições industriais, cujas lógicas têm fins bem distintos.
Pergunto-me o que é que esta solução tem a ver com a pedra calcária que caracteriza a praça que, se usada simplesmente como prolongamento dos antigos lajedos, não introduzira obstáculos novos à leitura da sua unidade. Artifícios como os propostos seriam quem sabe úteis para uma delimitação de futuras concessões de esplanadas (sobre as quais nada é revelado no projecto). E como tal têm sido abolidos em muitas praças um pouco por toda a Europa. Veja-se a do Montecitorio em Roma, a da Unità d'Italia em Trieste, a Praça do Palais Royal em Bruxelas, a de Reims, a de São Marcos em Veneza. Com corredores para automóveis em granito, que nunca fez parte da lista de materiais usados na Praça do Comércio, consegue-se plasmar para sempre o trauma da invasão dos automóveis iniciado em 1949 com a abertura da Avenida da Ribeira das Naus.
Agora que se prevê um condicionamento de tráfego, poderia ser a ocasião ideal para eliminar a memória recente do asfalto, com calcário da região para reconstituição das vias calcetadas perimetrais de que se tem constância iconográfica.
À lista do muito que não é abertamente explicado à população junta-se o projecto de iluminação ou o mobiliário urbano que se pretende implantar. Componentes fundamentais para julgar da sua viabilidade e do seu resultado final. A Praça do Comércio é muito mais do que uma praça do Parque Expo ou das docas de Lisboa e, como tal, a reconversão do seu valor patrimonial e cultural ao serviço de lógicas baseadas só na animação comercial e social não deveria ser permitida por se tratar de um monumento nacional.
Lisboa arrisca a desmonumentalização da Praça do Comércio, utilizando-a como simples arranjo cenográfico ao serviço de uma lógica consumista de bares, esplanadas e asseptização de espaços onde muito da identidade de cidade está em risco de ser perdida. Da sua relação tradicional com o rio, com a terra, com os materiais da região, com a luz, com a sua história.
Desejava-se com a classificação de monumento nacional alargado à zona da Baixa Pombalina a candidatar a Património Mundial, conseguir garantir a aplicação integrada de uma metodologia história e crítica. Não se sonhava que sobre um monumento nacional a passividade da tutela fosse tão evidente na hora de a cobrir com uma manta e com retalhos vários de métodos e de conteúdos.
Coordenador técnico da candidatura da Baixa Pombalina a Património Mundial entre 2002 e 2006.»

9 comentários:

Anónimo disse...

Depois, fiquem muito surpreendidos se nas sondagens Santana Lopes já andar taco-a-taco com o Costa do burro.

Arq. Luís Marques da silva disse...

Comentários lúcidos e suportados no conhecimento técnico e histórico, são sempre bem vindos;
as soluções apontadas são por mim defendidas desde sempre.
Muitos parabéns.

Arq. Luís Marques da silva disse...

Comentario postado a 2 de Julho:

"O terreiro do Paço merece algo de verdadeiro e simples, algo que seja contemporâneo, mas digno.
E um pavimento de pedra "plastificada", por mais que se use em Paris (se calhar a empresa fabricante é francesa), não é verdadeiro, não é digno daquela nossa praça:
Aquilo, é para um Pólis da Costa de Caparica.
Se quer Terra no Terreiro, assuma com verdade esse tipo de pavimento no seu projecto e use saibro natural; nos parques existe e é muito bonito!
Se quiser algo mais mais urbano, mais forte, assumindo a placa central como o centro de uma praça real do sec XVIII, utilize o lageado de pedra, com dignidade mas, acima de tudo, com verdade."

Anónimo disse...

E como já aqui referi, tremo só de pensar no que vai acontecer à Praça se se confirmar a afirmação do Costa de que iria lá haver equipamentos amovíveis, fáceis de montar e desmontar...

Estou mesmo a imaginar aquilo cheio de barracas de plástico, vermelhas e verdes, com bastante publicidade, umas vezes assim, outras assado.

Anónimo disse...

«lajedo» seu... enfim, sempre do mesmo calibre ;)

arq. silva disse...

Interessante apesar de não partilhar dos muitos argumentos.
A começar porque o projecto não se encontra a "inquerito publico", de resta já se ouviu muito destes comentários de manter como um terreiro, esta praça não pode nem deve ser comparada com o Jardim das Tuilleries, seria um erro. O julgo desnecessário os lisboetas virem ao Terreiro do Paço para terem contacto com a sua terra.
compreendo da necessidade de retirar o trânsito acho uma temeridade, a baixa não tem atractivos suficientes e vive da passagem de alguns, seria mais conveniente resolverem a atractividade da Baixa e posteriormente retirar os automoveis. Tanto mais que este transito agora desviado está a circular por zonas infinitamente mais frágeis e complexas. Erro estupido e demagógico.

não vejo NINGUEM se opôr à maior descaracterização da praça com a introdução patética e imbecil da saída de Metro.

Não tenho uma visão antiquarista do património, pode-se e deve-se intervir sem deteriorar, aliás para esse património possa fazer parte da vida de hoje. No entanto, deve ter a possibilidade de desmontar por exemplo, em vez dessa vontade despótica, narcissica de querer deixar a sua marca.
Este comportamento revelador da indentidade nacional que infelizmente as "narrativas do 25 de Abril não chegaram para tapar os buracos que se abriram...", e isto devido à ignorância e falta de cultura, numa oscilação bacouca de identidade deste povo. Que vive há largos anos numa desesperante falta de confiança e vai na conversa de uma demagógica modernidade histérica.

Ferreira arq. disse...

Sem dúvida nenhuma, uma das exposições que melhor traduz o nível do atentado que está a ser consumado na Praça do Comércio.

Os nossos políticos ainda não perceberam que, se querem fazer OBRA NOVA, sem quaisquer condicionalismos, o podem fazer legítimamente: - devem procurar locais onde não exista património. Se possível, locais ainda não edificados. Mas principalmente onde não exista uma cultura valiosa que nos tenha sido legada, em que, para além de sentirmos a obrigação de a estimar, sentimos também a honra de a valorizar.
E assim não denotavam tanto a sua falta de cultura, nem a incultura de um povo que admite estes actos.
Quando a obra é num monumento nacional, a responsabilidade é ainda muito maior. Assim como o respeito pela pré-existência.
E deviam ser deixadas de lado todas as arrogâncias e vontade de brilhar no novo, para deixar respirar o passado. Isto seria ter alguma cultura.

Infelismente não é o caso.
E parece que nem com uma "lambada" destas, se consegue chamar à razão quem de direito?
Louvo a atitude e o saber do autor, assim como não ter tido medo de se expôr.

Embora tenha, em alguns pontos, um entendimento um pouco diferente.
Não me parece de forma nenhuma adequada a ideia de reviver o Terreiro.

Aspecto fundamental desta nova praça, do pós terramoto: a sua finalidade - Praça do Comércio. Perfeitamente integrada na acção diária da vida da nova cidade.
Em meu entender é esta a alma que a praça merece e que lhe falta. Que falta à cidade e à capital. Uma praça, com a vida de praça principal.

Não uma alameda, não um jardim, não um terreiro. E não um palco de vaidades para utilizações mercantis pontuais, à exploração mercantilista dos publicitários, camuflados de pomposo "Urbanismo Comercial".

E com alguma actualidade: - ambientalista na composição, racionalista na expressão e no aproveitamento diário; dinâmica na funcionalidade - tinha que ter árvores, e cativar o estar.
Uma praça que fosse a expressão do cidadão que trabalha e é produtivo, numa sociedade organizada, com futuro, que aguenta novos terramotos.

Esta ideia de ordem social subjacente ao plano da Baixa Pombalina, perde-se completamente no projecto de "obra nova" que está a ser implementado por António Costa, quando tinha a obrigação, a imposição, por ser monumento nacional, de ser respeitada.
Mas não, é o oposto de tudo o que devia ser.

E nem o assumir, pelos autores e promotores, da "aridez" própria desta praça; de que não é para estar; de que é o urbanismo comercial que lhe vai dar vida... nada disso lhes salva a desfeita que estão a fazer a todo um povo.
Não é obra de um país culto, nem de pessoas cultas.

Isto é um atentado. É uma obra de vândalos.
Isto é um crime de lesa património, cultural e monumental.

S.O.S. disse...

De facto, deviamos obrigar o executivo camarário a "provar" primeiro o resultado em que vai dar aquela obra.

Era mandá-los para o meio da praça, apanhar a torreira do sol durante uma hora, a meio da tarde.

...E colocavamos o nosso Presidente António Costa na garupa do cavalo... atrás do D. José...

Já que aquilo vai ser só para ver e tirar fotos... não lhe faltava a visibilidade...

??? Não haverá aí ninguém que faça uma caricatura disto ??? Então Henricartoon - Henrique Monteiro?

Ficavam lá mesmos girinhos, sozinhos, muito bronzeados e até queimadinhos... ao ponto de perceberem minimamente o que andam a querer fazer ao povo (é para o povo ir para lá, não é?).

E passavam a respeitar mais o património.

Anónimo disse...

Realidade de Lisboa
http://www.youtube.com/watch?v=p3TjeimIBSk

http://lisboasos.blogspot.com