25/08/2010

Por onde anda a memória das casas de Lisboa que contam histórias? Património

In Público (22/8/2010)
Por Cláudia Sobral

«Há na capital dezenas de casas em tempos habitadas por figuras das quais reza a História. Muitas nem estão assinaladas. Muitas nem estão protegidas. Há as habitadas, as abandonadas, as demolidas. Também há as casas-museus - e essas contam-se pelos dedos.

Abandono e poucas excepções no Porto


Há casas esquecidas. "Se diz que quer ficar mesmo no nº 18... é aqui." Para lá da janela do táxi vê-se apenas um prédio esventrado. Mas é o 18. Dizem que está habitado, mas as portadas que dão para a varanda do segundo andar estão abertas. De velhas e vandalizadas. Como que a mostrar o tecto que se desfaz - há buracos de estuque caído que deixam a estrutura de fora. A fachada é de azulejos em tons de azul. Remendados. Há rachas nas paredes e aqui e ali o cor de laranja dos tijolos a descoberto contrasta com o azul dos azulejos. E ainda assim o prédio tem um ar imponente. Aqui viveu Joaquim Machado de Castro, escultor português que trabalhou para a Casa Real. É dele a estátua de D. José I na Praça do Comércio.

Apenas no terceiro andar há vestígios de um inquilino: um pano branco sujo, seco do sol, pendurado. Engrácia Ferreira - e nome próprio é por causa da santa, faz questão de mencionar -, 78 anos, sai à varanda. Gosta de observar a Estação de Santa Apolónia e o rio de lá de cima. Diz que paga a renda a um escritório, mas que já não sabe quem será o dono daquilo. Repete várias vezes que dali não sai. Por nada. Um escultor viveu no prédio? "Isso é passado, não interessa." E de qualquer das formas não sabe de escultor nenhum. Por baixo do seu andar moraram os "batateiros", que vendiam batatas e feijão. "E viveu uma senhora que vendia livros, no rés-do-chão. Depois foram-se todos embora." Como é que nunca ouviu falar em Machado de Castro? Não há sequer uma lápide evocativa na fachada do prédio. Engrácia vive aqui há mais de 50 anos. Não sabe ao certo quantos, não os contou. Mas quando se mudou já Machado de Castro tinha morrido há muito.

São 155 as lápides evocativas de Lisboa, de acordo com as contas do Departamento de Património Cultural da câmara. Isto as autorizadas. Ninguém consegue garantir que não haja proprietários a colocarem-nas indevidamente. "A colocação de uma placa implica sempre a autorização da câmara e do proprietário do imóvel", clarifica a entidade que gere o património cultural da capital.

"Não somos muito pródigos a assinalar estas casas", diz o olisipógrafo Appio Sottomayor. "Regra geral ou não se assinala os sítios, ou até se despreza." E recorda o episódio da demolição da casa onde viveu Garrett, em Lisboa: "Nem lá passei ainda. Para não ver."


Não faltam casas com muitas histórias


Uma das fachadas mais recheadas da cidade será a do nº 6 da Rua João Pereira da Rosa. Provavelmente "um dos mais literatos de Lisboa" - assim descreve o olisipógrafo Appio Sottomayor o prédio onde chegaram a viver Ofélia Marques, José Gomes Ferreira, Bernardo Marques, Fernanda de Castro, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão e António Ferro.

Assinalar os locais é importante e poderá ser um primeiro passo para iniciativas futuras, como percursos ou roteiros por locais que marcaram a vida de uma personalidade. Quando se deu início às obras de demolição de uma das casas onde viveu Pessoa, na Estefânia, a directora da Casa Fernando Pessoa, Inês Pedrosa, não se mostrou impressionada. "Choca-me mais que o local não esteja assinalado como tendo sido uma das moradas de Fernando Pessoa e que não haja por Lisboa um percurso pessoano", disse ao PÚBLICO na altura. Essa casa não estava protegida. Nos casos em que o património está ameaçado a câmara pode até expropriar os imóveis. "Mas isso nunca acontece", lamenta Paulo Ferrero do movimento Fórum Cidadania Lisboa. "A própria câmara não dá o exemplo. Veja-se o caso da casa de Júlio de Castilho."

É uma casa cinzenta e a que começam a faltar pedaços, junto a um largo que baptizaram com o nome do olisipógrafo que ali viveu. Restos de tinta quase invisível revelam que terá sido cor-de-rosa - é geminada com outra, que foi restaurada e que é da cor que já desapareceu desta. Nas traseiras havia um jardim, agora destruído. O muro que o protegia ruiu. E agora há um chão coberto de pontas de cigarros e de garrafas de cerveja vazias. E há ervas secas. Resta uma árvore de flores lilás. Não se vê ninguém aqui. Na fachada, bem lá no alto, pregaram uma lápide de homenagem ao olisipógrafo. Mas as letras estão gastas e escondidas pelos tufos de erva que ali crescem. Na parede. E esta casa está classificada como imóvel de interesse público, integrado no conjunto do Paço do Lumiar. Desde 1997 que é propriedade da Câmara de Lisboa.

"Aquelas casas [do Paço do Lumiar] não têm muito por onde sobreviver. O sítio tornou-se muito ermo e para ser modificado precisa de um programa conjunto e não recuperar uma casa sem se saber bem porquê", diz a presidente da junta directiva do grupo Amigos de Lisboa, Salete Salvado.

Há casas que dá jeito demolir. "Ou aparece um proprietário interessado em preservar o património, ou não há nada a fazer", lamenta Paulo Ferrero. "Se se conseguisse salvar a casa Daupiás, já era óptimo."

Fica no início da Rua do Arco a São Mamede. É um chaletemparedado domado por trepadeiras - que já mal se vê da rua. Um jardim que já não tem nada de jardim. Plantas e ramos escorrem pelas bordas dos muros, como que a tentar fugir dali. E mesmo assim sente-se um cheiro intenso a jardim de casa de campo.

Luís Oliveira traz comida de gato numa taça. Há muitos gatos por aqui. Pára e contempla os restos daquilo que foi um jardim experimental e a casa que Frederico Daupiás, pioneiro português na floricultura e na horticultura, mandou construir em finais do século XIX. "Eu vinha cá com a minha avó comprar flores. Sou do tempo em que isto estava tudo cuidado", conta. "Mas isso foi em meados dos anos 50." Vive no prédio amarelo que fica mesmo do outro lado do aqueduto, que o separa do chalet de Daupiás. Mudou-se para aqui aos sete anos, quando a sua mãe enviuvou e regressou à casa dos pais. "É uma pena que estes palacetes não sejam recuperados", diz.

O movimento Fórum Cidadania Lisboa tem um projecto para "adaptar o local aos novos tempos, preservando a memória de Daupiás", que passa pela recuperação da casa para a Junta de Freguesia de São Mamede e para um espaço de acolhimento para idosos e pelo aproveitamento do jardim para um projecto de hortas urbanas.

A câmara já recusou um pedido de demolição feito pela imobiliária Seoane&Vidal, actual proprietária. Os herdeiros pediram que fosse classificado como imóvel de interesse municipal - sem sucesso. A casa e o jardim estão, no entanto, abrangidos pela zona especial de protecção do Aqueduto das Águas Livres. O projecto de demolição e construção de um condomínio foi rejeitado pela câmara e a imobiliária não pôde adiantar que ideias tem em mente para o chalet, os jardins e o prédio anexo. Para já, a casa continua a ser devorada por um jardim que cada vez é mais isto.

O prédio onde morreu o escritor Almeida Garrett, na Rua Saraiva de Carvalho, não teve a mesma sorte que o chalet. Foi o caso mais polémico dos últimos anos. Quiseram demoli-la em 1971. Não conseguiram. Voltaram a tentar. E, depois de petições e pareceres, a casa desapareceu, em 2006. No local existe hoje um condomínio privado.

Muitas das casas onde viveram figuras ilustres continuam habitadas. Como aquela em que morreu o poeta Cesário Verde, nos números 12-14 do Largo de São Sebastião. "Conta-se que esta casa terá sido concedida a uma trisavó do meu pai, mãe solteira de um senhor abastado, um pouco para calar algumas vozes." Assim terá ido parar às mãos da família de Gonçalo Oliveira, 54 anos, actor e encenador, a casa onde morreu Cesário Verde. "Mas isto é uma das várias histórias. Nunca ninguém de família a confirmou. É só o que se contava por aí."

Gonçalo, filho do proprietário, acaba de chegar do supermercado. Olhos grandes verde-azeitona, cabelo grisalho apanhado. O actor explica que o quarto de Cesário só pode ter sido no primeiro andar. "É lá a casa grande. É lá que estão os quartos."

Às vezes há escolas que aparecem para visitas de estudo. "E visitam a casa, ainda que já não haja nada para ver", conta. "Nem um móvel ou objecto daquela altura."

A casa do lado - são duas geminadas - está em melhores condições do que esta. Tal como aquela que foi de Júlio de Castilho está classificada como de interesse público, integrada no conjunto do Paço do Lumiar.

"É preciso muito dinheiro para restaurar esta casa e nós não somos uma família propriamente abastada", diz Gonçalo. A falta de meios financeiros para a preservação ou restauro de edifícios ou vivendas antigas é um dos problemas de que os proprietários frequentemente se queixam. Existem, contudo, alguns apoios a que os proprietários privados podem recorrer.



Quando uma casa pode tornar-se num museu

Gonçalo Oliveira nunca teve em mente um projecto para a casa relacionado com o poeta? "Não. Não temos outra casa para viver que não esta."

"Muitos responsáveis - ministros, secretários de Estado e autarcas - pensam que a compra do edifício onde um escritor viveu é uma prova de cultura, sem se darem ao trabalho de investigar se há qualquer coisa para meter lá dentro. No que diz respeito a Cesário [Verde], o que o Estado deve fazer não é adquirir imóveis, mas contribuir para que, através de boas traduções, os estrangeiros possam conhecer a sua poesia", escreveu a historiadora Maria Filomena Mónica, autora de uma biografia do poeta, num artigo de opinião no PÚBLICO, em 2007.

Muitas destas casas em Lisboa estão habitadas. "Nesta casa nasceu e morou Wencelsau José de Sousa Moraes, oficial da marinha e escritor português (1854-1929)." É um prédio do mais modesto que há, quatro andares, na Travessa da Cruz do Torel.

"Nesta casa segundo a tradição documenta faleceu em 10 de Junho de 1580 Luiz de Camões." No rés-do-chão do 139 da Calçada de Santana fica a Tasca do Beco: a dona do prédio trabalha na mercearia do lado. Francelina da Silva, 55 anos, comprou o prédio há sete anos. Há dois a câmara obrigou-a a fazer obras. E assim foi. Está todo habitado. Nunca pensou fazer dele outra coisa. "Camões? Olhe, quando ele morreu, estava ali outra casa, só de rés-do-chão", argumenta. "E para além disso nem se tem a certeza que tenha morrido mesmo aqui."

"Acho que é preferível que as casas que foram de habitação permaneçam de habitação - desde que não caiam aos bocados - a, sem meios, serem transformadas noutra coisa", afirma Salete Salvado. "Para que uma casa seja transformada em casa-museu, é preciso haver dinheiro para essa conversão e uma colecção suficientemente importante e interessante para ser lá colocada."

"No caso de Júlio de Castilho não faz sentido haver uma casa-museu, porque não há espólio. Aquilo que havia - os manuscritos - foram comprados pela câmara e publicados. E isso vale mais do que qualquer casa-museu", diz Salete Salvado.

A falta de espólio não foi a justificação para o espaço que foi casa e atelier de Alfredo Keil, na Avenida da Liberdade, classificado como imóvel de interesse municipal, não ter sido transformado num atelier-museu, como chegou a propor o movimento Fórum Cidadania Lisboa, num plano para a reabilitação da avenida. Acabou por se acordar que o espólio do autor de "A Portuguesa", também pintor e poeta, irá para Torres Novas, para um museu dedicado a Keil. A abertura estava prevista para este ano.

"Infelizmente situações destas são muito frequentes", comenta Appio Sottomayor. E dá outro exemplo: "O espólio de Eça de Queirós foi parar a Tornos, aonde ninguém vai, em vez de estar aqui numa casa digna desse nome."


Exemplos que evocam um pintor e um poeta

Quando consegue uma casa passar a casa-museu? Em Lisboa esses casos contam-se pelos dedos. Para Paulo Ferrero há na capital apenas duas dignas desse nome: a Anastácio Gonçalves - também Casa de Malhoa - e a Fundação Medeiros de Almeida. A forma como as duas se transformaram em casas-museus foi a mesma: depois da morte dos proprietários, coleccionadores de obras de arte.

A Casa Anastácio Gonçalves dificilmente passa despercebida - venceu o Prémio Valmor de Arquitectura em 1905. Projectada pelo arquitecto Norte Júnior, foi a primeira casa de artista lisboeta. Mandada construir no início do século XX, na Avenida 5 de Outubro, foi casa e atelier do pintor José Malhoa até ter sido comprada, em 1939, pelo médico Anastácio Gonçalves, que nela viveu e foi organizando a sua colecção de obras de arte. Depois da morte de Anastácio Gonçalves a casa passou, em 1969, a propriedade do Estado, por vontade do médico. Mas só em 1980 abriu ao público como museu. Para além das exposições permanentes das colecções de pintura, de porcelana e de mobiliário de Anastácio Gonçalves, existe um espaço para exposições temporárias.

Também a Fundação Medeiros e Almeida, na Rua Rosa Araújo, onde o empresário António Medeiros e Almeida viveu durante três décadas, foi, após a sua morte, cedida ao Estado e transformada em casa-museu. Foi criada em 1973 e o seu acervo é composto por colecções de pintura, de escultura, de relógios, de porcelanas chinesas, de peças de mobiliário, de arte sacra, de joalharia e de têxteis.

A Casa Fernando Pessoa é apontada como outro bom exemplo, embora não seja comparável às anteriores. Aberta ao público desde 1993, expõe o espólio do poeta dos heterónimos e cumpre também funções de centro cultural - com salas de exposições, um auditório e uma biblioteca dedicada à poesia.

Segundo Paulo Ferrero, Lisboa é uma cidade de pouca "consciência cultural", a que também faltam casas-museus. "Não sei se haverá um problema de falta de sensibilidade, mas às vezes cheira um bocado a isso. É evidente que estamos em crise, mas a falta de dinheiro também tem servido de desculpa para muita coisa", alerta Appio Sottomayor. Paulo Ferrero reconhece que a criação de casas-museus não é simples. Sugere que se assinalem os locais. E que depois se criem percursos, roteiros. E dá o exemplo das casas onde viveram José Bordalo Pinheiro e Óscar Carmona, assinaladas. "Aquilo está a cair, num canto. Ninguém passa lá."»

3 comentários:

Filipe Melo Sousa disse...

Contam histórias de inquilinos que pagavam 100 escudos de renda.

Xico disse...

não li tudo... mas se não há em Lisboa um percurso pessoano, como diz a directora da Casa Fernando Pessoa, quem melhor do que ela para o criar?

Anónimo disse...

Outra vez essa historia sr. Sousa? Arre.