29/01/2007

Que cidade queremos?

In Público (27/1/2007)
A opinião de Jorge Mesquita e Ana Gago

«Parece ter virado moda: de cada vez que em Portugal um promotor imobiliário pretende fazer aprovar um projecto que não "cabe" no Plano Director Municipal (PDM) - em razão da altura das cérceas, da excessiva densidade de construção, ou de ambas -, entrega-o a um nome sonante da arquitectura para melhor o fazer "passar": é o que está a acontecer mais uma vez com os projectos de Norman Forster para Santos e de Ricardo Bofill para as Picoas, em Lisboa, apresentados com a aura de "arquitectura de autor" - como se toda a restante arquitectura não tivesse autor e como se tal cunho bastasse para autorizar, a priori, toda e qualquer obra sua.
Convirá assim recordar que cada obra - incluindo as ditas "de autor" - vale, ou não, por si própria, na sua relação com o sítio, o quadro envolvente e a história, os quais consubstanciam a sua "circunstância", para transpor para a arquitectura o conhecido conceito de Ortega y Gasset. E o valor estético de uma obra de arquitectura não deve ser jamais dissociado do seu impacto urbanístico na apreciação que dela fazemos. A sua conformação topográfica e urbanística é uma condição da sua existência. Por isso, entendemos também que reduzir a discussão em torno da construção ou não de torres na cidade a uma questão de beleza ou de gosto descentra e falseia a própria discussão. Pelo seu impacto urbanístico, uma torre não é nunca uma mera peça escultórica!
Que visa a referida estratégia? Duas coisas: intimidar os cidadãos com a "autoridade" dos nomes e, sob o pretexto de que estão em causa projectos de excepcional valor arquitectónico, forçar o contornamento do PDM através da elaboração de planos de pormenor, também eles de excepção, feitos por medida.
Perguntar-se-á: mas pode um plano de pormenor, instrumento de gestão territorial subordinado ao PDM, estar em desacordo com este? Por extravagante que pareça, pode. Atente-se no Decreto-Lei 380/99, que estabelece o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, e no seu art.º 80 (Ratificação), todo ele um mimo de subversão da lei pela própria lei, alçapão pelo qual a lei é evacuada para, em toda a legalidade, dar lugar ao livre arbítrio dos homens. Reza o seu n.º 3: "Quando não se verifique a conformidade devida [com as disposições legais e regulamentares vigentes, bem como com quaisquer outros instrumentos de gestão territorial eficazes], o Governo pode ainda proceder à ratificação no caso de [...] e) O plano de pormenor, não obstante a desconformidade com o plano director municipal ou o plano de urbanização, ter sido objecto de parecer favorável da comissão de coordenação regional".
Assim a apreciação subjectiva e casuística das CCR e do próprio Governo dá cobertura legal a tais projectos, mesmo que em violação do PDM e da demais legislação e regulamentação urbanística!

O exemplo do projecto de Bofill
Eis o xeque-mate legal que abre a porta àquilo a que poderíamos chamar o tratamento VIP da especulação imobiliária. Este começa, aliás, no próprio poder autárquico. Recordemos a declaração da vereadora do urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa recolhida pelo jornal Expresso de 23 de Setembro último a propósito desta temática: "As torres permitem libertar espaço público à superfície. Com esse espaço é possível construir mais fruições". Confrontemo-la, por exemplo, com o projecto de Bofill para as Picoas: a ir avante, a torre surgirá no mesmíssimo gaveto anteriormente ocupado por um palacete rodeado de um jardim, entretanto demolido. O "espaço" que a torre viria "libertar" é o volume em altura acima do ocupado pelo palacete e pelo jardim, ou seja, 20 e muitos pisos! Nem é público nem permite "construir fruições" nenhumas (a não ser, naturalmente, a fruição que resulta da multiplicação do capital, mas essa é pelos seus promotores que é "fruída").
Esse projecto inscreve-se, aliás, numa estratégia mais vasta de alteamento das cérceas na Av. Fontes Pereira de Melo para os cerca de 30 pisos/100 metros de altura, a que o referido plano de pormenor viria dar "cobertura legal". A concretizar-se, não só subverterá o PDM como violará igualmente, entre outras - e a coberto do referido art.º 80 do Decreto-Lei 380/99 -, aquela que é uma das regras de ouro do urbanismo, a chamada "regra dos 45º", consagrada no art.º 59 do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, segundo o qual "a altura de qualquer edificação será fixada de forma que [...] não ultrapasse o limite definido pela linha recta a 45º traçada [...] a partir do alinhamento da edificação fronteira [...]"!
Que o próprio poder autárquico apadrinhe tamanho desvario urbanístico representa, a nosso ver, um abuso e desvio de poder: não foi para favorecer a mais desaforada especulação que ele foi eleito, mas para promover o interesse público, zelando pelo direito dos cidadãos a viver numa cidade habitável! E que um cancro legal como o acima referido exista e lhe dê "cobertura" é uma afronta à ética, ao direito e à cidadania!
Convém não esquecer que, se o lucro da especulação que as torres servem é privado, o seu custo é público: por regra, atentam contra a cidade, a sua sustentabilidade urbanística e ambiental e o homem; o que trazem é rotura de escala, hiperdensificação, congestionamento, desumanização.
Os inúmeros projectos "em carteira" para Lisboa não deixam dúvidas: aí, as torres libertam espaço à superfície... para a construção de outras torres. Não é por acaso que a torre de Bofill vem "ombrear" com o Sheraton próximo: é bem mais fácil fazê-la "passar" no quadro de rotura que este já criou. E mais fácil será fazer passar outras naquele local existindo já aquelas duas!
O propósito que lhes subjaz tem tudo a ganhar com a desconstrução da cidade e com a destruição da memória que a acompanha. Quanto mais homogénea e legível na sua homogeneidade for a cidade, melhor ela resistirá à predação. E, inversamente, quanto mais desordenada for, mais exposta à predação estará.
A arquitectura e o urbanismo só podem vingar enquanto artes de construção da cidade na duração e na regra. Ora o espaço urbano é, cada vez mais, alvo de uma ganância especulativa que o vê como um bem consumível a explorar na imediatez da oportunidade e ao sabor da mesma, ganância essa para a qual regra e estabilidade legal são um estorvo. E não nos deve surpreender que "autores" de arquitectura - que são empresários da arquitectura também, com ateliers de dezenas de pessoas a trabalhar para si - estejam prontos a servi-la, teorizando, se preciso for, sobre as vantagens da construção em altura. As suas, ao menos, são inegáveis, com o que tais projectos lhes dão a ganhar.

Alargar o exercício da cidadania
É contra esta "visão" de cidade "do tempo breve", da instantaneidade aleatória, que aposta na rentabilização extrema do seu espaço, vandalizando-o, que nos cabe agir, salvando o que ainda pode ser salvo e travando o desurbanismo que por aí campeia. É possível contrapor-lhe uma concepção de cidade que, projectando-se no tempo, aposte na renovação e revitalização do património edificado, na recuperação dos quarteirões, na recomposição, num urbanismo modular e sustentável, virado para o homem e respeitador do ambiente. Sem um sobressalto cívico, muito horror urbano nos espera!
Neste quadro, o espaço reservado ao efectivo exercício da cidadania - que é, antes de mais, participação continuada, a diversos níveis, na vida e na governação da cidade - é demasiado limitativo, encontrando-se nele os interesses dos cidadãos insuficientemente protegidos.
As nossas cidades não deixarão de se degradar enquanto esta marginalização dos cidadãos se mantiver. É para reequilibrar um barco que adorna sempre para o lado errado que pomos quatro ideias à consideração pública: o alargamento do âmbito da discussão e da participação pública, de forma simplificada, a projectos de edificação a partir, por exemplo, dos 1000 m2 de área; a colocação obrigatória de maquetas destes projectos nas juntas de freguesia, para apreciação pública; a possibilidade de referendo vinculativo à escala municipal e/ou de freguesia sobre projectos arquitectónicos ou urbanísticos que dêem origem a uma petição assinada por uma dada percentagem mínima de residentes (p. ex., três ou cinco por cento); e por último, mas não de somenos, o princípio da criação de uma área verde mínima por área construída em cada novo loteamento (por ex., 1 m2 de área verde por 4 m2 de área construída), vertendo todos estes princípios na lei.
E o bem comum exige que a lei seja expurgada quanto antes de cancros legais como o acima identificado e que princípios universalmente reconhecidos e inscritos na lei, como a regra dos 45º, sejam cumpridos escrupulosamente!
Os cidadãos, que deveriam ser actores incontornáveis na governação da cidade, têm vivido arredados do palco onde as decisões se tomam - quantas vezes em seu detrimento. É com eles que urge repensar a cidade, alargando o espaço da cidadania. Julgamos que as vias aqui propostas permitem fazê-lo. Eles, melhor do que ninguém, a saberão defender. Têm nisso, aliás, todo o interesse!
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