25/03/2014

Carta aberta: o Arquivo Histórico Ultramarino, a democracia e o conhecimento

Mais de uma centena de professores universitários e investigadores portugueses e estrangeiros assinaram uma carta aberta, enviada na quinta-feira ao ministro dos Negócios Estrangeiros, contra a integração do Arquivo Histórico Ultramarino na Universidade de Lisboa.
in Público, 21 Março 2014

Salão Pompeia no Palácio da Ega

Em 1931, depois de um debate que se estendeu por mais uma década, foi criado o Arquivo Histórico Colonial, no âmbito do Ministério das Colónias, para “guardar, inventariar e catalogar os documentos que interessem ao estudo e conhecimento da história política, administrativa, missionária, económica e financeira da colonização portuguesa”.
Seria constituído “a) Pelos documentos manuscritos de natureza histórico-colonial actualmente na posse do Ministério das Colónias e suas dependências; b) Pelos documentos de idêntica natureza que existirem nos arquivos dos governos coloniais […]; c) Pela cartografia portuguesa […]; d) Pelos documentos que de futuro derem entrada no Ministério das Colónias, depois de decorrido o período de 10 anos”.
Eram ainda incorporados na nova entidade, sita no antigo Palácio dos Condes da Ega, à Junqueira, os documentos históricos do extinto Conselho Ultramarino (1642-1833), do Arquivo da Marinha, e outros, oriundos das colónias, cujo conjunto formara o denominado “Arquivo de Marinha e Ultramar”, sob a guarda da Biblioteca Nacional de Lisboa desde 1889.
A 1 de Janeiro de 1974, o então denominado Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) foi integrado na Junta de Investigações Científicas do Ultramar (JICU), organismo de coordenação da investigação científica relativa às colónias, dependente do Ministério do Ultramar. Após as descolonizações, o AHU continuou na dependência da JICU, renomeada em 1982 Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), sob tutela do Ministério da Educação e das Universidades.
O seu objectivo era fazer investigação sobre as regiões tropicais. Não estava, portanto, vocacionado para a salvaguarda, descrição e comunicação de arquivos históricos. Apesar disso, teve também o encargo da conservação de outros relevantíssimos acervos, tais como os da Comissão de Cartografia (1883-1936), das expedições científicas às ex-colónias (1936-1974) e da Comissão Executiva da Junta de Investigações do Ultramar (1936-1974).
Em 2012, a tutela do IICT passou para o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), depois de uma fugaz transição pela Presidência do Conselho de Ministros, a partir do Ministério da Ciência e do Ensino Superior (2009-2011). O MNE, no orçamento de 2014, infligiu enormes cortes ao IICT, comprometendo a sua existência. O ministro dos Negócios Estrangeiros afirmou há semanas no Parlamento que o IICT será integrado na Universidade de Lisboa. A 11 de Março, o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação reuniu com o conselho directivo do IICT, e confirmou a decisão. Quanto ao futuro do AHU, disse apenas estar ainda em estudo.
O AHU é um arquivo de Estado e património nacional
O AHU conserva património arquivístico nacional: documentação produzida e acumulada por órgãos do Estado português no âmbito das actividades relativas à gestão do Império, da América do Sul às ilhas atlânticas, dos territórios na África aos no Índico e no Pacífico. Património arquivístico que deve estar acessível a todos os cidadãos. Dada a sua abrangência, interessa também, directamente, aos países de língua oficial portuguesa, e constitui uma parte importante dos recursos disponíveis para o conhecimento de todo o processo de expansão europeia. Por conseguinte, o AHU é um polo de atracção da comunidade de pesquisadores de todo o mundo, e altamente potenciador da internacionalização da produção científica portuguesa em ciências sociais e humanidades.
O presente momento convida-nos a reflectir sobre a tutela que melhor se adequa à natureza e à missão do AHU. Na Europa, há uma clara e enraizada resposta a essa questão: os “arquivos coloniais” são arquivos de Estado. No Reino Unido, os arquivos administrativos do antigo império integram os Arquivos Nacionais. Em Espanha, integram os Arquivos Estatais, no Ministério de Educação, Cultura e Desporto. Em França, os arquivos do ultramar pertencem ao Serviço interministerial dos Arquivos, da Direcção Geral dos Patrimónios, do Ministério da Cultura e da Comunicação. Nos Países Baixos, os arquivos coloniais integram os Arquivos Nacionais, do Ministério da Educação, Cultura e Ciência. Na Alemanha, encontram-se num polo dos Arquivos Federais. Na Itália, estão no Arquivo Central do Estado, do Ministério dos Bens Culturais.
Uma forma de comemorar o 25 de Abril de 1974, a democracia e o fim do colonialismo é criar condições para que o AHU, integrando os restantes acervos históricos do IICT, tenha os seus fundos integralmente inventariados e abertos à consulta, para o desenvolvimento de trabalhos de investigação e divulgação científica. Isso implica que o AHU passe a ser tutelado pelo sector da administração pública dedicado à Cultura e ao Património, na dependência dos Arquivos Nacionais, onde os seus fundos documentais poderão ser sujeitos a procedimentos técnicos normalizados e internacionalmente sindicáveis.
Defendemos que os documentos ora existentes no Palácio da Ega, assim como aqueles dispersos por todas as outras instalações do IICT, sejam não apenas salvaguardados, mas devidamente tratados, valorizados e disponibilizados para consulta pública, sob a guarda directa do Estado, como ocorre, sem excepção, em toda a Europa.
Lisboa, 19 de Março de 2014.

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