22/03/2009

Mais um atentado ao património arquitectónico e artístico do século XX

In Público (22/3/2009)
Michel Toussaint


«1. Recentemente foi denunciado o início da demolição clandestina de uma moradia na Rua Alcolena no Restelo, bairro planeado por volta de 1940 por Faria da Costa, arquitecto urbanista por Paris, e que foi sobretudo ocupado, ao longo das décadas seguintes, por habitações unifamiliares de grandes dimensões, com um núcleo de habitações económicas e um notável conjunto habitacional/comercial projectado por Raul Chorão Ramalho.
O bairro espraiou-se pela cerca do convento dos Jerónimos da qual restaram duas capelas, uma delas envolvida por um jardim projectado por Ribeiro Telles. Nesta vasta área, sobretudo habitacional, está o resultado do labor de muitos eminentes arquitectos que trabalharam, em meados do século XX, nomeadamente nessas grandes moradias encomendadas por gente com generosa capacidade financeira, que fizeram do Restelo um local privilegiado para morar em Lisboa, produzindo um conjunto de excelentes exemplos da arquitectura portuguesa moderna.
No entanto, ameaças pairam sobre eles. Por exemplo, ainda há muito poucos anos uma moradia na Avenida das Descobertas, projectada por Francisco Conceição Silva, esteve na iminência de ser destruída, tendo-se logo desfeito o mural pintado por Júlio Pomar, bem visível da rua, que desapareceu para sempre. A casa acabou por ter uma intervenção mais qualificada, se bem que perdendo os acabamentos e cores originais.
Agora outro caso semelhante acontece. A moradia, projectada em 1951 por António Varela - arquitecto importante da geração modernista, mas já reconhecendo o Movimento Moderno, tal como o seu colega Jorge Segurado com quem trabalhou -, começou a ser destruída e logo pela retirada dos painéis em azulejo criados pelo muito conhecido artista Almada Negreiros, autor de vários revestimentos deste tipo, sendo assim um dos responsáveis pelo renascimento de azulejo na obra arquitectónica em meados do século XX com o apoio dos arquitectos, com quem trabalhou em relação coordenada.
Nesta casa, como em outros exemplos, os painéis foram concebidos para locais precisos e em íntima integração com a concepção arquitectónica. Para além disso a sua abundância, extensão e significado tornam este exemplo excepcional na obra do artista.
A sua retirada é assim um atentado ao todo original e uma perda de testemunho desse reavivar do azulejo, então considerado elemento proeminente da tradição do país, mas também material arquitectónico capaz de ser moderno e útil para uma arquitectura renovada, depois da investida nacionalista do Estado Novo. Nesta casa existiam vários painéis em azulejo, alguns deles revestindo varandas inteiras, e bem visíveis da rua, um já desapareceu e outros dois foram danificados. Mas a casa merece a atenção culta para além dos azulejos e outros elementos artísticos/decorativos.
Foi concebida para a encosta onde está implantada e para o sítio que ocupa. Da rua sobe-se por duas escadas exteriores que enquadram a garagem e um curioso tratamento do talude em xadrez com placas em pedra, já significativo dos valores iniciáticos que os azulejos bem representam, bem como as peças cerâmicas, de outro artista, que envolvem a porta da entrada principal, ou a escolha e disposição das cores e desenhos dos acabamentos no interior. E é uma grande moradia com o seu rés-do-chão ocupado pelo salão e zona de serviço, e duas zonas íntimas no primeiro andar, originalmente uma para a dona da casa e outra para o seu filho. Aqui a afirmação iniciática está outra vez presente. Mas uma das mais interessantes características da casa é o facto de ser coroada por um vasto terraço coberto por vasta laje, em parte aberta por pérgulas, com amplas vistas sobre o estuário do Tejo.
O arquitecto respondeu a um programa de moradia isolada no seu lote, mais complexo e exigente que o habitual, estando atento aos particulares interesses de quem iria lá morar, e projectando, até aos mais cuidados pormenores, numa encosta no bairro do Restelo. O terreno envolvente foi moldado de modo a acolher a casa e sujeito a projecto específico de jardim que incluiu também algumas intervenções artísticas. Gravada num revestimento em pedra está uma citação do poeta Paul Éluard e sob ela a assinatura do arquitecto datada de 10 de Fevereiro de 1954, data de aniversário do filho e ano de inauguração da casa. Assim foi sublinhada a conclusão de uma obra em que os donos da casa, o arquitecto (e sua equipa) e os artistas convergiram para criar uma casa excepcional.
Tudo isto e muito mais que os estudos, que estão a decorrer sobre a casa, irão revelar levam a reclamar a sua classificação como bem cultural colectivo e respectiva preservação. A cidade de Lisboa não se pode dar ao dúbio luxo de desperdiçar um tal exemplo de qualidade arquitectónica e artística e de um importante testemunho do renascimento do uso do azulejo num tempo de afirmação moderna, que, em Portugal, significou o fim das veleidades culturais do Estado Novo. Arquitecto »

6 comentários:

ACN disse...

Desculpem, esta casa é um nojo e por mim apoio a sua demolição integral! As pessoas deviam saber que o betão armado não pode, técnica nem economicamente, ser recuperado - nem é suposto ser, é um sistema de construção de curto prazo - e que estas coisas do "património" modernista são uma vigarice intelectual... Se aquela casota tem alguma beleza, qualquer outro edifício então também a tem.
Quando muito se quiserem tirem os azulejos do Almada e metam-nos num museu qualquer, e destruam o caixote à vontade.

Alberto Castro Nunes

Anónimo disse...

Caro Alberto,

posso já adivinhar o que faz na vida!

Anónimo disse...

Lamentavel que o amigo Michel Toussaint só venha a terreiro defender estas obras, e em outras situações esteja calado.
Triste assistir a esta subserviência, uma insuportavel desonestidade intelectual e cultural da Ordem dos Arquitectos, muito pouco democratica.
Falta vida e mundo a estes marginais.

Anónimo disse...

Apoiado, caro anónimo!

Anónimo disse...

LOBA VILLA,23-3-09
O primeiro comentador, Sr Alb. Castro Nunes,ao dizer que aquela ARQUITECTURA é um "nojo",e que, sendo em BETÃO armado ,"é de curto prazo" e portanto um "falso património" , uma modernice , uma "vigarice intelectual"...
Nem sei como responder a tão reacionário dislate...a tanto disparate em tão poucas linhas!
Ocorre-me pensar que então vamos para "demolição integral"(palavras dele) deste "falso património" todo,modernista,em betão armado, de "curto prazo"...
Aceitando tal idiotice do Sr Castro Nunes,demoliríamos
tudo,de Perret a Le Corbusier(...),a nível internacional,passando aqui pelas "demolições integrais" das obras dos nossos Modernistas todos,em betão armado, que, para tanta idiotice nem citarei.
António Varela ,Arquitecto.
Almada Negreiros,Pintor.
Dois Senhores importantes da História da Arte e da Arquitectura portuguesa contemporâneas.
O Sr Castro Nunes, quem será ??? ...

Anónimo disse...

É claro que todos têm lugar na história, até o Adolfo tem !
Mas é preciso destinguir as coisas. Até posso concordar que o edificio seja preservado, para que se possa evitar erros futuros.
Só gostaria de assistir a esta mobilização na defesa de outros casos bem mais graves casos.
Como por exemplo defender o anbiente urbano de Belém (não ao museu dos coches) ou ainda o do Cais do Sodré (mamarrachos) ou ainda o hotel junto à Torre de Belém.
Ah! São vossos amigos? Bom então está bem, magnifico, é arte!

Defender só o que lhes convém demonstra uma total desonestidade intelectual, a história se encarregará de colocar esta gente no seu lugar.