Uma vez por ano, é certa a romaria de milhares de pessoas ao submundo
da Lisboa romana, em plena Baixa. As Galerias Romanas da Rua da Prata abrem a
visitas gratuitas de 23 a 25 de Setembro, integradas nas Jornadas Europeias do
Património. E nós já fomos espiá-las. Uma visita às entranhas da cidade para
revisitar dois milénios de história.
Uma vez por ano, é certa a romaria de milhares de pessoas ao submundo
da Lisboa romana, em plena Baixa. As Galerias Romanas da Rua da Prata abrem a
visitas gratuitas de 23 a 25 de Setembro, integradas nas Jornadas Europeias do
Património. Antecipámo-nos e já fomos espiá-las. Uma visita às entranhas da
cidade para revisitar dois milénios de história.
Subitamente, um alçapão no meio da rua da Conceição em pleno bulício da
Baixa, entre eléctricos e automóveis. Descem-se meia dúzia de degraus ínfimos,
desaparece-se da face da terra, encolhe-se o corpo e Lisboa parece desaparecer
- mas não, é apenas mais uma das camadas da cidade, aqui em versão Olisipo, a
denominação romana da capital lusa.
Meia dúzia de degraus são o suficiente para darmos por nós a viajar
dois milénios durante um pequeno passeio por uma parte destas escuras e
tropicalmente húmidas galerias do tempo do imperador Augusto (séc. I d.C.),
que, por mais estudadas, parecem eternizar-se numa aura de mistério e exercerem
um fascínio contínuo sobre os milhares de visitantes que fazem fila durante os
únicos três dias por ano em que abrem ao público - de 23 a 25 de Setembro,
integradas nas Jornadas Europeias do Património.
"Cuidado com a cabeça", vai avisando o nosso guia, o
arqueólogo António Marques, do Museu da Cidade. E cuidado com os pés e onde se
encosta, avisamos nós: as galerias, do tempo do imperador Augusto, permanecem
inundadas ao longo de todo o ano e só quando se aproxima a época das visitas é
que chega o corpo dos bombeiros para drená-las, operação que antes demorava
dias e actualmente é despachada numa noite.
Nós passeámos ainda com a equipa de técnicos a ultimar os preparativos
para receber os visitantes, incluindo cuidados com a rede eléctrica, que este
ano, informa Marques, precisou de mais trabalhos que noutros períodos,
incluindo substituição de tubagens, mas os visitantes, por estes dias - em
grupos de 20 e em visitas em redor dos 20 minutos - já deverão ter tudo pronto à sua espera.
As galerias permaneceram séculos escondidas da História até que o
terramoto de 1755, ao mesmo tempo que destruía sem compaixão boa parte de
Lisboa, as revelou, vai contando o nosso guia. A descoberta data de 1771. Desde
essa altura, foram alvo das mais diversas teorias, incluindo julgarem-se
termas, fórum municipal ou possuírem "águas milagrosas" para curar
certas maleitas. Hoje, dá-se por quase certo que são criptopórticos,
construções em abóboda que os romanos usavam em terras instáveis para servirem
de plataforma de suporte a outras edificações, e que terão estado também
ligadas a actividades portuárias e comerciais.
Entre tanto trabalho pós-terramoto, pouca importância se deu à
preservação desta parte importante da história alfacinha e lusa: apenas foi
salvo um pedestal romano onde uma inscrição em latim assinala Esculápio, o deus
da Medicina. Já as estruturas romanas foram adaptadas para alicerçar a
construção pombalina superior. As visitas regulares, a estras outrora
conhecidas como Conservas de Água da Rua da Prata, começaram já década de 80 do
século passado, sendo agora habitual a sua abertura integrada na semana das anuais
Jornadas do Património - a não ser que as águas subam tanto que impeçam a
visita, o que já sucedeu. Como não há lugar a reservas, o cenário repete-se
todo o ano: muita gente à espera em fila pela vizinha rua dos Correeiros acima.
Durante a visita, a uma parte das galerias - já que existe outra parte
conhecida mas cortada a visitas por uma parede do caneiro da rua da Prata -
vamo-nos desviando de poças e paredes húmidas e seguindo os passos e
ensinamentos do nosso guia. Quem espera do passeio toda uma revelação
monumental, poderá ficar seriamente desiludido. Trata-se mais de uma lição de
história in loco. Com a particularidade de ser dada entre paredes milenares e
podermos cheirar as entranhas da Baixa enquanto sentimos e ouvimos vinda de
cima a sua vida, particularmente a cadência do icónico eléctrico 28 que cruza o
sistema vital do centro histórico alfacinha.
O passeio faz-se na semipenumbra, com focos teatrais, pela rede de
galerias perpendiculares. Vão-se espiando pequenas celas escuras, que deverão
ter servido de áreas de armazenamento, núcleos de água, arcos em cantaria, até
ao clímax aquático: a Galerias das Nascentes, que é também chamada de
"Olhos de Água". Uma galeria com uma fractura contínua de onde brota
incessantemente toda a água que invade o espaço. E daqui nascia um poço, o
"poço das águas santas", o tal de onde, ainda no século XIX, a
população ia encher bilhas de "águas milagrosas". E de onde vêm estas
águas? "Dos níveis freáticos que correm por baixo da cidade", explica
o arqueólogo, "das ribeiras da Almirante Reis e Avenida da Liberdade que
antigamente corriam a céu aberto".
Além da lição de história, do feito por fim conseguido de penetrar nas
galerias e dos pés e roupa mais ou menos húmidos conforme a sorte ou a falta de
jeito, há que ter em conta também a experiência, seguramente inesquecível para
quem não tem nada a ver com trabalhos subterrâneos por Lisboa, de descer e
subir das profundezas no meio de uma rua da Baixa com, no nosso caso, o 28 a
vibrar ao lado da cabeça.
Para complementar a visita, sugere-se um salto ao vizinho Núcleo
Arqueológico da Rua dos Correeiros, em edifício do banco Millenium BCP - Rua
dos Correeiros, nº 9. Dias 23 e 24 de Setembro está aberto até às 22h (desde as
10h); dia 25 das 10h às 12h e das 14h às 18h. O núcleo integra estruturas
arqueológicas da cidade, descobertas durante escavações.
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