Para quem penetra o labiríntico Cais do Sodré pela Rua Nova do Carvalho, em Lisboa, a partir do Largo de São Paulo, localizar um imponente prédio devoluto de seis andares mesmo no fim da artéria, com dezenas de pombos empoleirados nas varandas, não é de todo uma tarefa hercúlea. Situa-se mesmo em frente ao Oslo, Liverpool ou Viking, bares com nomes de terras nórdicas que serviam de gancho para atrair milhares de marinheiros estrangeiros que aportavam em Lisboa em meados do século passado.
Há ainda vestígios de construção recente junto ao prédio majestoso – andaimes, vedações de arame farpado, tijolos. No rés-do-chão, alinham-se, por esta ordem, três discotecas contíguas: Europa, Tokyo, Jamaica. Estão encerradas desde o início de Maio, altura em que a Protecção Civil referenciou o mau estado e a insegurança do imóvel que as aloja, depois do colapso de parte do segundo andar do edifício.
Uma semana "Rehab"
É início de noite no Cais, na véspera do “Rehab”. Há quem pare diante do Jamaica – espaço que em Janeiro celebrou quarenta Invernos - para cumprimentar o gerente ou para perguntar “Quando é que reabre?”. Dentro da discoteca, entre escadotes, caixas de ferramentas, latas de tinta e vassouras, um DJ faz o soundcheck a “Loser”, de Beck, ou a “Magnificent seven”, dos Clash. Um cartaz afixado na discoteca ao lado responde à pergunta da praxe: “Reabre, reabilitado, reabitado” no dia 20 [para ser mais exacto, às zero horas]. E vai mais longe: lembra que “Rehab”, a festa de reabertura, se estende até dia 24 [25, em nome do rigor].
Até “Rehab”, os gerentes dos três estabelecimentos de diversão nocturna nunca tinham cooperado, mas a situação “de dificuldade”, levou-os a uma “união de esforços” para “abrir em grande”, afirma Fernando Pereira, sócio-gerente do Jamaica e co-organizador do evento. “Com uma casa fechada quatro meses, criam-se outros hábitos, as pessoas vão para outros sítios que até gostam, que não conheciam”. A ideia desta festa de quatro dias é reparar a imagem abalada e recuperar clientela, em conjunto: “Queríamos que a notícia que as três casas abriram fosse tão ou mais noticiada do que a do encerramento”. De uma adversidade nasceu ainda a vontade colectiva de reanimar a moribunda Associação dos Comerciantes e Amigos do Cais do Sodré, em fase de revisão de estatutos.
Apesar de ligeiros retoques, pinturas de paredes, alterações dos sistemas de ventilação e mudanças de tectos, pouco se alterou na imagem interior de cada um dos três estabelecimentos. As idiossincrasias de cada casa mantêm-se, a começar pela programação musical. Esta noite, por exemplo, regressam as sessões de terça-feira de reggae, que há vinte anos são um lugar cativo no Jamaica, com o DJ Enigma nos pratos. O Tokyo celebra a reabertura das portas com as “Mais Pedidas do Facebook” (Cure, Morphine, Kraftwerk e Pixies estão na lista de escolhas, na página da rede social). No Europa, a noite “Freaky Fiction” (no dia 20) e o live act de Maurice Aymard (no dia 24), vindo de Barcelona, faz jus à fama de música electrónica que a casa tem alimentado.
Há, no entanto, um evento partilhado pelas três casas, com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa. De sexta-feira para sábado há festa na calçada e no asfalto, em articulação com as discotecas. Abrem as hostes a Companhia Marimbondo, grupo de animação de rua responsável pela introdução do novo circo em Portugal, e encerram as actividades ao ar livre os Homens da Luta, com o espectáculo “Há Luta no Cais”. Pela noite dentro, o Europa cede o gira-discos ao colectivo Bailarico Sofisticado, “a dar pregos desde 1999” e com os quais se pode “ser de qualquer tribo, da África à Europa de Leste, passando por Brooklyn e praias tropicais”, segundo a apresentação do projecto no Facebook. Para essa mesma noite está ainda agendada uma sessão de electrónica ao vivo com o projecto lisboeta Monokone. No Tokyo e no Jamaica, estarão nos pratos pela noite dentro os DJs residentes respectivos, Armando e Bruno Dias.
Há luta no Cais
Há vinte anos a gerência do Jamaica endereçou uma carta ao senhorio do prédio para denunciar uma infiltração. Até hoje não obteve resposta. Este sinal é evocado por Fernando Pereira, sócio-gerente da discoteca, para contextualizar a intervenção da Câmara Municipal após o colapso parcial do segundo andar. As obras de beneficiação ganharam o carácter de “estado de emergência” no início de Maio. Face à inércia dos proprietários, a Câmara Municipal tomou então posse administrativa do prédio por “incumprimentos sucessivos” dos proprietários, seguindo-se as obras de consolidação da estrutura do edifício, uma intervenção paga pelos arrendatários.
Em Agosto, sem certezas sobre o termo das obras, os gerentes dos três bares endereçaram um abaixo-assinado ao presidente da Câmara, no qual exigiam uma data definitiva para a reabertura das três casas. “Estávamos a chegar a uma situação limite”, recorda o empresário. Estavam em causa vinte postos de trabalho nas três discotecas, impostos e salários a serem pagos sem garantias, sem datas à vista. A pressão resultou. A vistoria aos estabelecimentos ficou agendada para 19 de Setembro e a reabertura para 20.
Outro abaixo-assinado, desta feita de mais de vinte comerciantes da Rua Nova do Carvalho, seguiu para a Câmara. No documento era solicitada a interdição da rua à circulação automóvel. José Sá Fernandes, responsável pelo Ambiente e Espaço Público, e os comerciantes da zona selaram um acordo ao encontro desta proposta, que inclui ainda a possibilidade de introdução de esplanadas. A artéria entre a Travessas dos Remolares e a Rua de São Paulo passará a ser exclusivamente pedonal e ciclável a partir de quarta-feira, véspera do Dia Europeu Sem Carros.
É uma pequena grande revolução no Cais do Sodré, histórico e pitoresco "bairro" onde conviveram durante anos prostituição de rua, boémia, intelectuais e marinheiros, e no qual o assassino de Luther King, foragido, se apaixonou por uma prostituta portuguesa em Maio de 1968. Mas a mudança já se vinha a sentir, com a chegada de novos públicos e com a abertura de novos espaços como a loja e bar de conservas Sol & Pesca, o Bar do Cais, a renovada disco Roterdão ou a Taberna Tosca, além de outros a serem reabilitados (o antigo Arizona vai reabrir como casa de petiscos diurna). Todos a conviverem, lado a lado, com bares míticos de strip tease ou de salas de espectáculos (como o MusicBox, antigo Texas) e casas de sempre. Agora, é tempo da “reabilitação”, que, para Fernando Pereira, surge "na perspectiva daquilo que se pretende para a zona. Não queremos que seja só um espaço de divertimento nocturno, mas uma zona onde abram outros espaços, galerias, mercearias, [onde haja] gente a viver".
António Veiga, gerente do bar Liverpool há 13 anos, e a trabalhar há 36 no Cais do Sodré diz que a “fama” da violência e da criminalidade naquela rua são “uma fantasia”. Mete-se a estação do Cais do Sodré, o Largo de São Paulo ou Corpo Santo e aquela rua no mesmo saco sem cabimento, lamenta Veiga. O empresário está a favor do fecho da rua ao trânsito, porque, alega, contribui para a segurança dos clientes e da zona. Fernando Pereira afina pelo mesmo diapasão. Agrada-lhe a ideia de “rua livre, [para se] beber copo e falar”. Como no Bairro Alto? Sim, mas com menos “garrafas no chão e confusão”.
In Público
4 comentários:
Mas qual novo Cais do Sodre´? Como se o Cais do Sodré se resumisse as três discotecas.
Pode ser que o novo Cais Sodré tenha putas novas.
O novo cais do Sodré dos prédios a cair,dos monos mais feios de Lisboa,as agências,do trânsito excessivo e da ribeira das naus alí ao lado "tão bonita".
O transito é excessivo porque a actual gestão camarária o estrangulou. Antes até fluía bem.
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