06/09/2006

Que esta casa seja posta ao abrigo da fúria demolidora!

(foto IPPAR)


Ainda sobre o perigo que ronda (de facto) a Casa-Museu Anastácio Gonçalves, aqui fica um resumo do brilhante artigo publicado na edição de dia 3 do Diário de Notícias:

"Em 1964, um ano antes da sua morte, Anastácio Gonçalves deixa em testamento indicações precisas sobre o futuro que pretende para a sua colecção. Colecção que deve ficar "regularmente patente à visita do público para seu recreio e instrução" e ser preservada como conjunto, sem que as suas peças "sejam desviadas, mesmo a título provisório, para qualquer outro museu, palácio ou local".

"Espécime, talvez feliz, da arquitectura da época em que foi construído", a casa estava também no centro das suas preocupações, tanto mais que, desde a sua aquisição, Anastácio Gonçalves enriquecera a colecção na perspectiva de a deixar à comunidade. Indissociáveis como eram - e como são -, importava salvaguardar ambas e, estando o edifício "ligado a tradição artística do período áureo da nossa produção pictural dos últimos tempos", escreveu, "isso será mais uma razão para que seja posto ao abrigo da fúria demolidora".

Com este gesto, tomado num momento em que as Avenidas Novas começavam a afastar-se da sua vocação original, Anastácio Gonçalves honrava a lembrança de um arquitecto e de um pintor, sem os quais esta casa jamais poderia ter sido também sua. Gesto raro, como o atesta o destino, bem diverso, que foi dado ao último atelier de Malhoa na capital: ficava no n.º 8 da Travessa do Rosário, à Praça da Alegria, prédio modesto plenamente integrado no conjunto, de que hoje apenas resta registo fotográfico, nomeadamente no espólio desse incansável apaixonado por Lisboa que foi Eduardo Portugal.

No espaço de dois anos, Malhoa assistira à morte do irmão e à morte de sua mulher e será em larga medida o desgosto desta última perda que o levará a desfazer-se, em 1919, da sua residência nas Avenidas Novas. Dois outros proprietários se seguirão, até Anastácio Gonçalves se cruzar com ela e a adquirir em 1932 - o mesmo ano em que Malhoa pintará o seu retrato.

Lisboa, que tem uma relação de desamor com as casas de vultos-chave que por ela passaram - lembre-se o processo da última casa de Garrett ou, antes dele, o da casa de Guerra Junqueiro -, não cuidaria dessa casa onde o pintor se reconciliou com a vida, após anos de luto: no seu lugar está hoje um objecto híbrido, de construção recente, não obstante a composição da fachada ser, em parte, a mesma e as cantarias também.
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"Casa Anastácio Gonçalves: uma torre perto de mais"
Maria João Pinto

"Cento e cinco metros de altura, ultrapassando o complexo Sheraton/Imaviz; seis pisos de estacionamento em subsolo, servindo um edifício de uso misto, para habitação e hotelaria. Local de construção proposto: o último quarteirão que, na Avenida Fontes Pereira de Melo, ainda poderia documentar a génese daquele que foi um dos eixos estruturantes das Avenidas Novas que levaram Lisboa a expandir-se para norte e a sonhar, à escala das suas possibilidades, com os boulevards haussmannianos de Paris.

Se viabilizado pela Câmara de Lisboa, no quadro do plano de aumento de cérceas para aquela avenida, o Edifício Compave, do arquitecto catalão Ricardo Bofill, não ditará apenas a perda do último quarteirão relativamente intocado que nela resta: a sua área de implantação situá-lo-á a menos de cem metros de uma casa e de uma colecção que o Estado se comprometeu a preservar: a Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves (CMAG), originalmente residência e atelier do pintor José Malhoa, que Manuel Norte Júnior projectou em 1904 e cuja excelência seria destacada com o Prémio Valmor do ano seguinte. E que, já nos nossos dias, levaria à sua classificação como Imóvel de Interesse Público.

Director da CMAG há pouco mais de um mês, José Alberto Ribeiro não esconde a sua apreensão, bem como a dos técnicos que consigo trabalham, perante os possíveis impactes de uma obra desta dimensão na segurança estrutural do imóvel e na integridade do seu acervo. Acervo frágil, cujos núcleos de maior relevo integram cerca de 400 peças de porcelana chinesa, maioritariamente da dinastia Ming, cuja valia tem trazido propositadamente a Lisboa investigadores interessados no seu estudo, e um expressivo
corpo de pintura de Oitocentos, europeia e portuguesa, sobretudo de perfil naturalista e tardo-naturalista.

"A minha primeira preocupação", refere ao DN José Alberto Ribeiro, "é naturalmente a casa e a colecção e a possibilidade de nos 'afundarmos' aqui dentro". A par da perda, muito para além da fase de obra, do sentido de escala e relação que a demolição dos seus imóveis de acompanhamento acarretará - preocupação de que deu já conta à autarquia, em carta enviada ao seu presidente, Carmona Rodrigues. Mas é também como cidadão que José Alberto Ribeiro encara este projecto com perplexidade. "A questão", refere, "não está na construção em altura, nem na qualidade do projecto, nem no prestígio do arquitecto, mas na localização que é aqui proposta". E, nessa medida, refere também, tal como a conservação preventiva se tornou conceito caro a quantos intervêm em património, também ele deveria ser aplicado à intervenção na cidade e à gestão do seu edificado.

"Profundamente crítica" do rumo de continuado desvirtuamento, funcional e imagético, que vem sendo dado às Avenidas Novas, Raquel Henriques da Silva lembra, por seu turno, que a CMAG ficará condenada a "sobreviver com uma expressão urbana ainda mais enfraquecida", caso este projecto venha a ter concretização. Foi, de resto, graças à relativa coesão do conjunto em que se insere, e que está agora ameaçado, que a CMAG pôde expandir-se nos anos 90, agregando ao corpo da residência de Malhoa/Anastácio Gonçalves um imóvel adjacente, também de Norte Júnior: o mesmo onde se instalaram as áreas de recepção e de exposições temporárias. Se vontade houvesse para recuperar este quarteirão de forma qualificada, frisa ao DN a historiadora, que igualmente dirigiu o Instituto Português de Museus, de que a CMAG depende, esse mesmo lugar teria todas as condições "para se manter como aspecto de pausa" numa artéria que praticamente perdeu todo o seu referencial de origem, incluindo dois prémios Valmor: um edifício de Ernesto Korrodi, demolido para dar lugar ao Teatro Villaret, e, no ponto onde se ergue hoje o complexo Sheraton/Imaviz, o palacete Silva Graça, mais tarde adaptado a hotel - o mítico Aviz, onde Calouste Gulbenkian viveu, e com quem Anastácio Gonçalves igualmente privou, primeiro no estrito quadro da sua prática profissional como médico-oftalmologista, mais tarde no plano da estima pessoal nascida entre dois coleccionadores de arte.

Como todas as casas de memória, também a importância da CMAG - cuja sinalética, interior e exterior, José Alberto Ribeiro pretende
reforçar - se expande por outras vias, nomeadamente por força da profissão que Anastácio Gonçalves escolheu e dos nomes fundamentais na história da medicina em Portugal que conheceu, caso de Gama Pinto, de quem foi assistente, Ricardo Jorge ou Fernando da Fonseca. Ou de nomes fundamentais noutros planos, como os escritores Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro, de quem foi médico na sua área de especialização.

Porque todas as histórias se cruzam e há uma dimensão múltipla nesta casa, "Um pintor, um arquitecto, um coleccionador" constitui justamente um dos cinco temas do ciclo de visitas orientadas "20 Minutos com Arte - Conversas à Hora do Almoço" que a CMAG está a promover. Muito do Portugal da transição de Oitocentos para Novecentos, quando ela própria nasceu, passou por esta casa de escala humana, cuja memória persiste nas telas de Lupi, Alfredo Keil, João Vaz, António Ramalho, Silva Porto ou Columbano, no enorme lustre que pertenceu a Henri Burnay, nas obras que Malhoa aqui
>pintou (como O Fado, hoje no Museu da Cidade, ou Os Bêbados, hoje no Museu Nacional de Arte Contemporânea) ou nos nomes que aqui recebeu (como Ramalho Ortigão, elogiando-lhe a localização). É essa escala humana que tem agora futuro incerto.
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PF

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