28/03/2018

O inigualável café Estádio e outras velhas tascas de Lisboa


Por Pedro Machado, in Público Online (28.3.2017)

«A recente alteração da lei das rendas e a subida vertiginosa destas no terreno fez já estragos de monta. Estabelecimentos tradicionais, alguns até centenários e muito estimados pelos habitantes locais, desapareceram sobretudo pela acção do implacável compressor especulativo. Contam-se, entre estes, a Adega dos Lombinhos, a drogaria Pereira Leão, a Pomba do Carmo, o café Palmeiras e o café Estádio. Outros houve que se modernizaram para servir outros públicos, como é exemplo a leitaria Camponeza, que perdeu as suas belíssimas mesas em azulejo.

Existem diferentes causas para estes encerramentos, mas nem sempre se trata de falta de clientela ou viabilidade económica. O que acontece em muitos casos são rendas que atingem valores muito acima da realidade económica do país, e por vezes é apenas uma questão de opção e de conceito, por exemplo, um hotel que não quer a sua imagem associada a um lugar de cariz popular ou que quer ter controlo sobre o espaço comercial.

Do café Palmeiras não sobraram sequer as suas belíssimas arcadas e o seu magnífico pé direito — a ânsia de rentabilização foi tal que o rés-do-chão foi convertido em dois pisos. O café Estádio, que acabou verdadeiramente em Fevereiro de 2015, teve uma segunda vida mais curta e cheia de equívocos, naquela que foi uma tentativa de modernização impossível de um espaço que só poderia funcionar na sua forma clássica. Fechou definitivamente no Verão de 2017.

Este lugar no Bairro Alto, que era um marco indelével da antiga boémia lisboeta, tratava-se do casamento perfeito entre o café de bairro e o destino dos errantes nocturnos e dos inconformados. Ao fim da tarde liam-se por ali jornais, à hora do jantar acompanhavam-se e discutiam-se as notícias e noite fora praticava-se a tertúlia e a boémia. Tinha luzes fluorescentes, empregados rudes, bebidas baratas, amendoins e pregos no pão que não primavam pela perfeição mas que saíam sempre a bom ritmo. Nas paredes estavam pendurados quadros algo naïve do Estádio Nacional e do casario dos bairros lisboetas, bem como muitos prospectos de âmbito cultural. Ali se encontravam as estudantes de belas-artes, idosos, escritores, actores, músicos, advogados, homens de negócios, empregados da restauração, homens do lixo e até sem-abrigo, um lugar que nunca negou a entrada a ninguém. Às sextas e sábados à noite era frequente não encontrar nenhuma das 80 cadeiras vagas e aí havia que encostar ao balcão, o que faríamos com satisfação pela oportunidade de disfrutar aquele ambiente anárquico, e electrizante.

Não raras vezes havia discussões políticas e clubísticas inflamadas, ali estacionavam também alguns leitores solitários, algumas pessoas sinistras e outras até que falavam sozinhas. O Estádio era também muitas vezes palco de romances improváveis e inusitados. Tudo isto era acompanhado por aquela que seria provavelmente a última jukebox de vinyl em funcionamento comercial na cidade, uma belíssima Rowe Ami Cadette Violet, já muito antiga, enrouquecida e onde não faltavam os grandes clássicos como o Quarto alugado do Tony de Matos ou o Dream a little dream of me de Anita Harris. O lugar tinha um charme decadente que já não se encontra mais nem tem substituto que se possa comparar, numa Lisboa que vai morrendo aos poucos.

O café Estádio foi cenário de alguns filmes, como são exemplos: Dina e Django, de Solveig Nordlund, e a curta-metragem O Bairro Alto já não é o que era, de Lígia Pereira, este último, descontando a cena violenta feita para o filme, dá até uma ideia mais fiel do que eram as noites deste lugar.

Mais abaixo, na Praça da Figueira, o café Videirinha e a pensão Ibérica resistiam heroicamente nos últimos meses de 2017, sob ameaça de fecho. A Videirinha já não voltou a abrir portas depois do dia de Natal. Este pequeno café era um lugar tradicional com um balcão corrido com assentos, paredes revestidas com azulejos de belos padrões de tons alaranjados e uma parafernália de artigos e objectos pendurados, desde maços de tabaco, pastilhas, rebuçados e bebidas de toda a espécie. Com uma excelente cozinha, preços baratos e relativamente pequeno, o lugar enchia-se frequentemente com trabalhadores do mercado, empregados do comércio, pedreiros, engraxadores, reformados e até carteiristas e prostitutas. Os clientes sentavam-se ao balcão para comer uma canja, um bacalhau cozido, beber imperiais acompanhadas de tremoços ou para tomar um café e um bagaço. Volta e meia saíam uns “bitaites” e umas “piadolas” ou uma resposta mais torta mas o ambiente era amistoso e sobretudo autêntico. O dono do estabelecimento estava disposto a negociar a renda e a pagar um preço mais elevado mas o proprietário do edifício não quis negociar. Agora esta verdadeira pérola será substituída provavelmente por um lugar luxuoso chamado Giuseppe’s, Low Fat Burger ou um lounge bar.

É verdade que não podemos estar à espera de continuar a ver aguadeiros a transportar vasos de água em cima de burros ou varinas com cestas de peixe à cabeça. Gostemos ou não, teremos de aceitar que a mudança é uma marcha imparável, mas ela não tem que ser absoluta e é possível ter algum controlo sobre a sua direcção. A intervenção bem-sucedida que salvou a Ginjinha Sem Rival mostra que é possível reabilitar edifícios sem os adulterar e mesmo assim salvaguardar as lojas históricas. A natureza do comércio para os habitantes locais nunca terá as mesmas características do comércio turístico. O pequeno café de bairro com as suas estimáveis particularidades, a sua clientela castiça e as relações que se criam entre estes não são substituíveis por modernos bistrôs self-service de paredes brancas, luminosas e desnudadas, nem por relações anónimas e mecânicas. Há quem defenda que sempre foi assim, que uns lugares fecham e outros abrem, mas a mudança é muito mais profunda que isso. O que está a acontecer é que talvez pela primeira vez na história da cidade os pobres estão a ser expulsos do centro, e isso está a acontecer a grande velocidade.

Esta Lisboa antiga, que estamos a ver fugir-nos dos pés, está muito bem documentada em alguns dos filmes de João César Monteiro, e também no filme de Alain Tanner de 1983, Dans la ville blanche, onde Bruno Ganz deambula pelas antigas tascas e tabernas cheias de pipas de vinho e onde se joga dominó. Alguns livros de fotografia, como é exemplo o notável Fado Português de Luís Pavão, dão-nos também uma ideia muito concreta de como eram essas tabernas antigas de Lisboa e os lugares onde se cantava o fado.

Vezes sem conta, ouvi estrangeiros a dizerem frases como: “We want to go where the locals go!” ou “We want to see the real life!”. E é precisamente essa “real life” que nós estamos a deixar que se extinga de forma dramática no coração da nossa capital. Se expulsarem todos os pobres do centro, e acabarem com a mistura de estratos sociais que fazem a cidade, a Lisboa que Wim Wenders descobriu um dia morrerá tristemente.

De alguma forma, o comércio, as pessoas e os seus rituais tentam resistir. A Rua das Portas de Santo Antão é um bom exemplo. Ao longo da rua os restaurantes praticam preços mais altos e foram quase todos colonizados por turistas, mas, nas travessas contíguas, os locais continuam a frequentar os restaurantes que oferecem um bom serviço a preços muito mais populares e onde as relações entre clientes e empregados têm uma natureza pessoal e amistosa. Se não formos capazes de cuidar e de preservar alguns destes lugares, o seu espírito, a sua forma e a história que eles contam, o que é que sobrará no fim?

Matemático»

5 comentários:

Anónimo disse...

O que se está a fazer em Lisboa é, partindo de uma lógica exclusiva de curto-prazo, matar a "galinha dos ovos de oiro". De um destino turístico de qualidade passamos a um destino turístico de massas. Cada vez mais turistas que gastam, individualmente, cada vez menos. Numa perspectiva meramente económica, o que está a ser feito é uma estupidez.

Anónimo disse...

Porque é o proprietário de um café no Forte da Casa ou no Cacém tem de pagar 500€ de renda e certos privilegiados em Lisboa pagam apenas 50€?

Anónimo disse...

Já não reconheço a minha Lisboa na proliferação de casas de hambúrgueres gourmet ou sítios a venderem coisas estranhas com nomes como granola e açaí....
Que Lisboa é esta?
Manuela

Anónimo disse...

Caro anónimo das 2:29 da tarde, se ser senhorio no Forte da Casa é assim tão bom, porque é que os proprietários lisboetas não vendem as suas propriedades em Lisboa e compram uns belos imóveis nessa localidade? Ninguém os obriga a ter propriedades em Lisboa...

Anónimo disse...

"De um destino turístico de qualidade passamos a um destino turístico de massas."

Lisboa foi um destino turístico de qualidade quando? Quando meia Alfama estava podre? Quando andar na baixa deprimia? Quando os carros se amontoavam em tudo o que era passeio e andar de bicicleta na cidade era sinónimo de demência? Queixam-se das lojas gourmet e de açaí? E quando essas lojas estavam fechadas e cheias de tralha? E quando o largo do intendente era uma sala de chuto a céu aberto?

Os tascos típicos e "inigualáveis" também eram, infelizmente, inigualavelmente porcos e inóspitos para quem, de fora, quisesse ver "the real life". O cronista refere "Dans la Ville Blanche" de Alain Tanner. Alguém viu esse filme com olhos de ver? Alfama, um bairro de lata que de branco nada tinha. Porcaria acumulada em todo o lado e paredes negras de fuligem do trânsito caótico? Lamento, mas não consigo ter uma visão romântica de uma cidade paupérrima de piso rebentado, ruas escuras e inseguras, equipamentos vandalizados e entregues aos elementos. Nada há de romântico na miséria.