«O exílio do Museu Instrumental do Conservatório, hoje designado Museu Nacional da Música, parece não ter fim. Em 1971 foi atirado abruptamente para fora de casa, na Rua dos Caetanos. Em 1994, após um périplo insano por várias instituições, que o encararam como lixo, foi instalado, com a dignidade possível, no Alto dos Moinhos. Após 25 anos de permanência nesta casa provisória, emprestada pelo Metropolitano de Lisboa (20 anos de concessão mais cinco de prorrogação – as tutelas entre 1994 e 2014 não providenciaram uma casa), chega o momento do golpe final: a anexação ao Palácio de Mafra, local com o qual não tem identificação a não ser a memória do encaixotamento infame entre 1991 e 1994.
Sim, exilado é o termo certo porque não lhe reconhecem o direito de ter casa própria no seu local de origem. Toda a constituição deste acervo se desenrolou em Lisboa, pela acção das gentes de Lisboa, com colecções, doadores, promotores e instituições de Lisboa. As suas peças icónicas estão igualmente ligadas a Lisboa: cravos Antunes, pianoforte van Casteel, flautas Haupt, construídos em oficinas que funcionaram no Bairro Alto e imediações.
Poderá parecer que por detrás desta explicação está a habitual mentalidade macrocefálica da capital. Macrocefalia seria se tivéssemos acabado de comprar uma colecção instrumental e decidíssemos de imediato que a sua instalação seria feita em Lisboa – não é o caso. A descentralização da cultura faz-se potencializando valências locais, facilitando a circulação dos cidadãos, adquirindo novos recursos e não desenraizando o património existente.
Este acervo anda a rodopiar com a cidade de Lisboa há mais de 100 anos, o que os tornou companheiros inseparáveis: 105 anos desde a formação do “1.º Núcleo de um Museu Instrumental em Lisboa”, constituído em 1914 por Michel’angelo Lambertini (lisboeta, acidentalmente nascido no Porto devido às viagens de negócios do pai) e por alguns doadores lisboetas; 103 anos desde a integração neste primeiro núcleo da colecção de Alfredo Keil (de um lisboeta e reunida no coração de Lisboa) em 1916, altura em que se junta ao projecto outro habitante de Lisboa, António Augusto Carvalho Monteiro.
Entre 1914 e 1920 foram reunidos cerca de 500 instrumentos, que são a soma do núcleo de Lambertini com a colecção Keil, sob mecenato de Carvalho Monteiro: o Museu Instrumental de Lisboa, na Rua do Alecrim. Com a morte de Lambertini e Monteiro no final de 1920, permaneceu a ideia de fundar um museu, assim como o remanescente de mais de 300 instrumentos, que permitiu aos continuadores juntar a colecção no Conservatório de Música de Lisboa, em 1931, dando finalmente sentido ao decreto de 1915, que criara um museu instrumental nesta instituição. Colecção e casa juntaram-se e viveram em relativa paz durante 40 anos. Em 1971, no contexto de uma reforma dos conteúdos programáticos da instituição, o museu é atirado para a rua, a colecção contava já com cerca de 700 peças.
Em 1974, em plena revolução de Abril, este acervo é apanhado fora de casa. Alguns professores do conservatório não desistiram dele e acompanharam-no até à passagem da tutela do Ministério da Educação para o Ministério da Cultura (despacho de 26/12/1977). Entre eles podemos citar Elisa Lamas e o já desaparecido Santiago Kastner, que dirigiu a elaboração das fichas do inventário antigo da colecção, que a classificou como “demasiado preciosa” e que alertou para o crime que se estava a cometer ao deixar o museu sem casa, configurando-o como “caso para uma denúncia contra o património, que ultrapassa o âmbito nacional”.
A passagem do museu para a alçada da Cultura trouxe esperança. O então criado departamento de Musicologia, sob a responsabilidade de Humberto d’Ávila e Isabel Freire Andrade, aumentou o acervo para mais de mil peças e divulgou-o com exposições por todo o país. Entenderam assim este património, tal como as equipas do museu desde a sua instalação no Alto dos Moinhos, que sem ovos têm feito excelentes omoletes. Basta olhar para a intensa programação do museu, que muito beneficiou da colaboração dos músicos do Conservatório de Música de Lisboa e recentemente também da Casa Pia de Lisboa.
Esta tem sido a constante desde 1971: quem recebe o cargo de cuidar deste património fica imbuído da missão, os tuteladores políticos, infelizmente, não. Entre a data do primeiro grande crime contra este acervo, em 1971, e a actualidade medeiam 48 anos – será possível que cerca de meio século depois o melhor que se consegue fazer é atirar com a colecção para fora do seu contexto histórico?
Passemos à parte prática: as despesas. Estando o património no seu contexto identitário, as possibilidades de realizar eventos a custo praticamente zero são inúmeras. No local de origem, muitas são as instituições que por empatia se emparceiram e potenciam a sua valorização. Havendo conhecimento sobre o percurso do museu, das personalidades e das instituições com ele relacionadas, muito mais se pode fazer. Esse conhecimento existe e está disponível. A autora destas linhas é também autora da história do museu, vertida em dois textos que abrangem o período de 1911 a 1994 (catálogo da exposição Michel’angelo Lambertini 1862-1920, 2002) e em mais dois textos dedicados ao período republicano (catálogo da exposição Tempos e Contratempos, 2010).
Como cidadã que respeita o património da humanidade, tenho carinho pelo Convento de Cástris e pelo Palácio de Mafra, locais escolhidos à pressa pela classe política, confrontada com a urgência de encontrar uma solução, por não ter feito o que lhe competia durante os 20 anos de empréstimo das instalações pelo Metropolitano. Por isso mesmo, parece-me que, tal como o acervo do Museu Nacional da Música, merecem ser valorizados no contexto da sua identidade, servindo simultaneamente de integradores sociais das respectivas regiões: é essa a missão civilizacional do património, tal como é entendida hoje.
Comparamos amiúde as nossas instituições e a nossa cultura com a dos europeus. Olhemos então para Paris, que criou a Cité de la Musique valorizando assim o património musical e a cidade, enquanto em Lisboa se procura atirar com o património musical para fora de casa em vez de o ampliar, truncando a sua história e a das instituições a ele associadas.
Relativamente a Mafra, temos ainda de considerar os custos da climatização que um local extremamente húmido exige para albergar o acervo. Ainda que a implementação se suporte em verbas europeias, no futuro não teremos dinheiro para a manutenção.
Não duvido que os centros decisores se aconselharam com personalidades do nosso meio intelectual, mas pergunto-me: quem ou o quê representam os consultores escolhidos? O povo a que pertencem ou a si próprios?
Termino citando Michel’angelo Lambertini: “Um povo que não cuida na arte, e especialmente na sua própria arte, é um povo morto” (Arte Musical, 1905, p. 145). Espero que o povo de Lisboa ainda esteja vivo.
Ana Paula Tudela
Historiadora»
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