17/07/2006

Lisboa, sombrio e luminoso mar mediterrâneo este...

In Público (14/7/2006)

"A opinião de José Fonseca e Costa

Ao senhor Américo Amorim, que me dizem gostar muito de árvores*

Quis fazer um filme que seria uma ode a Lisboa e os "hunos" dos júris do Instituto do Cinema, do Audiovisual e Multimédia não me deixaram. Fado Triste é uma história que só nesta Lisboa que ainda sobra pode ser filmada e, como tal, não podia deixar de ser senão a crónica de uma paixão, muito mais ou bastante menos do que um romance. Lisboa de luz e sombra sem meias-medidas, contrastantes até ao fundo da cegueira, reflectidas, ambas, pelo mar mediterrâneo em que se espraia o Tejo, antes de abrir-se num estuário e deixar-se penetrar pelo mar-oceano mais do que simplesmente aí desaguar, como acontece com todos os rios. Memoração de Lisboa, evocando Cardoso Pires, gaivota como nos versos do Alexandre O"Neill ou dos fados dos seus maiores poetas, dos mais eruditos, como David Mourão-Ferreira aos mais populares como Frederico de Brito - assim seria alegre e triste este Fado Triste a preto e branco e cor.

Fado, destino, sorte, acaso.

Toda a paixão é o fruto do acaso e não é por acaso que o fado, tal como se canta em Lisboa, só atinge a sua expressão mais plena quando canta a paixão, esse " fogo que arde sem se ver" de que nos fala Camões, o primeiro de todos os poetas.
A paixão é uma relação amorosa que não acaba bem e é tanto mais intensa quanto mais romântico for o quadro onde se desenrola. E mais impossível a sua transformação num conto com um desfecho optimista. A paixão é o amor sem limite, a busca do infinito.
Nesse filme que não farei , toda a paixão teria sempre a cadência do fado, destino, sorte, acaso e seria música plangente, saída do fundo das cordas de muitas guitarras. Ou da alma. Mesmo numa cidade romântica e doce, como aparece Lisboa aos olhos de quem pela primeira vez a descobre e não sabe ainda como queimam e cegam a sua luz e as suas sombras . É urgente fixá-las em película antes que desapareçam por força da acção dos "hunos" que tomaram conta da cidade e estão a fazer dela o seu far-west.

Os projectos tresloucados dos que querem transformar a cidade num amontoado de arranha-céus, numa massa informe e destruidora de betão armado, fechando a abertura e a vista para o mar da Palha em que se abre o Tejo aqui à frente, arrasando jardins, antigos monumentos vendidos à especulação imobliária, farão de ti, Lisboa "pregão de voz antiga", como te chamou o O"Neill, uma cidade cada vez mais triste porque já começou a destruição da tua alacridade e, ao mesmo tempo, da tua placidez, do encanto dos teus jardins secretos, do teu romantismo, estão a esganar-te a voz, a cortar-te as árvores, empenhados num processo de descaracterização a que são levados pelo desamor à tua beleza, consequência do desconhecimento das tuas sete colinas, sete colinas sete rios ou ribeiros que o cimento armado já não deixa desaguar no Tejo, presos contra diques, desviados à força dos seus cursos até que um dia a natureza rebente...

Os "hunos" que me proibiram de filmar o meu Fado Triste também chegaram à cidade e estão a destruir Lisboa, eles são os portadores do terramoto deste sinistro começo do século XXI, a América tem o Bush, nós temos esta gentinha que anda a desfazer Lisboa.

* as árvores centenárias do jardim do Convento dos Inglesinhos, cuja construção remonta a 1856, começaram a ser cortadas esta semana. O seu dono é o senhor Américo Amorim.

JFC
"

1 comentário:

John le Doe disse...

O sô Zé, em vez de andar a escrever letras de fados sem métrica e sem rima para publicar nos jornais, deveria pegar numa câmara daquelas bem pequeninas e fazer um filme moderno, daqueles que costuma dizer-se terem abolido a fronteira entre o documentário e a ficção (talvez assim o instituto até largasse umas coroas, o difícil seria decidir a que concurso ir) e a que também se costuma chamar low budget (é preciso explicar ao Sô Zé que low budget não é o que ele costuma ter para os seus filmes (apesar de ele afirmar convicto que o dinheiro não chega) mas esse valor a dividir, digamos, por quinhentos (escrevi por extenso não vá alguém pensar que é uma gralha)). Mas antes de tudo teria de fazer um pequeno percurso formativo: primeiro ver três vezes o único filme de jeito que fez (poderia aproveitar a oportunidade para queimar as bobines dos outros), segundo aprender com o Wiseman (imagino que o Sô Zé não o tenha ido ouvir a Beja, por isso apenas pode ver os filmes e ler qualquer coisa sobre eles), terceiro perceber que o seu dever é filmar o fado que lhe vai na alma com os meios que tiver e merecer (podem não ser iguais) em vez de se lamentar como um velho gagá e queixinhas, ainda por cima com uma ferramenta que, como se vê, não domina (sim, eu sei que também escrevo mal, mas quando o faço em lugares de responsabilidade encontro soluções para que não se perceba).

A ideia parece-me tão interessante que se ele não o fizer talvez eu o venha a fazer. Filmar com arte e sentimento a cidade a ser recaracterizada em directo! Uau, que bomba.

Aqui ficamos à espera.
(P.S. Se precisar de ajuda para reunir uns mil euricos com que se pode fazer um bom trabalho (desde que se queira, obviamente)) aqui estaremos.