Anteontem, aproveitando a presença em Lisboa de um amigo luso-americano defensor incansável dos velhos cinemas americanos, pude entrar num dos meus cinemas preferidos de infância, onde vi filmes como "O Padrinho", "Justiceiro Solitário" ou "Doutor Jivago", por exemplo, e onde não entrava há 15 anos, altura em que fechou portas como sala de cinema para se tornar na sede lisboeta da IURD: o Cinema Império.
O Cinema Império, na Alameda D.Afonso Henriques, é Imóvel de Interesse Público desde 1996, e, portanto, está classificado e protegido por lei das tropelias várias que eventuais donos sem escrúpulos queiram fazer, etc., etc. mas no caso do Império isso significa ser o exemplo acabado de como em Portugal há uma maneira muito peculiar de se entender o que significa ser "classificado e protegido".
O que eu vi ontem no Império, por entre gritos de "aleluia!", de pastores e plateia histéricos, e a dízima obrigatória de final de sessão, foi um Império completamente desvirtuado, por fora e por dentro daquela magnífica sala de gaveto, de planta assaz enviesada, fruto do traço modernista de Cassiano Branco, de finais dos anos 50. Senão veja-se:
Cá por fora há muito que desapareceram as esferas armilares em ferro forjado, que eram um elemento riquíssimo e que coroavam as linhas verticais da fachada. Onde páram? Ninguém sabe. Também cá por fora, lá em cima, o Império viu ser-lhe acrescentado um andar, sob a forma de marquise de aluminio, em toda a extensão do seu telhado. Também cá por fora os néons das colunas da fachada há muito que emanam uma luz azul celestial. Ainda cá por fora, o letreiro dizendo "Império" também desapareceu da fachada principal, restando apenas o da lateral. E lá dentro a coisa piora ainda mais:
O revestimento a madeira escura, que forrava parte das paredes da plateia e dos dois balcões (da mesma maneira que no São Jorge), desapareceu para dar lugar a um revestimento a imitar pedra mármore! As traves em madeira das paredes, palco, portas e de todo o interior, foram substituídas por colunas de capitéis coríntios (estará a IURD convencida que o cinema se chama Império por analogia com a Avenida de Roma e o Império Romano?) do mesmo material do revestimento das paredes. O resto das paredes e do palco está pintado de branco e de azul celestial, tal qual a mini-cortina de palco que emoldura o altar. Às portas em madeira, das saídas da plateia e dos balcões, foram acrescentadas cruzes em relevo. Nos tectos (principal, e por debaixo do 1º balcão)foram colocados lustres de saco, de cristal de pechisbeque. As escadarias e aqueles corredores imaginativos que serviam de apoio aos dois balcões foram quase todos adulterados desde o piso ao corrimão.
E a mais não pude ir, e por isso não falo, imaginando, porém, o que me reservaria a sala Estúdio (que parece ser agora o escritório do pastor), ou aquelas magníficas salas de estar (ou de fumo) com vista para a Alameda, onde costumava ir aquando dos intervalos das sessões.
Por isso pergunto ao Império, de que lhe serve ser Imóvel de Interesse Público?
PF
03/11/2005
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12 comentários:
Resta pedir ao Nosso Senhor, que nos deixe o S.Jorge em paz.
JA
É arrepiante a sua descrição tão penosamente ilustrativa.
O cinema Império e o seu saudoso Estúdio - retenho na memória a imagem nostálgica de um fim de tarde de outono, quando as cortinas se abriam no fim da sessão e deixavam ver o belo relvado da Alameda.
Já não haverá esperança? o cinema foi vendido ou cedido?
Tem que se abanar consciências, saberes e poderes. Estou a lembrar-me do CNC, por exemplo.
O Império foi vendido à IURD. Mas pelo que me foi dado a ver não faltarão muitos anos para a IURD desaparecer de Lisboa, ou ter que o vender, pois a plateia estava muito fraca... e a dízima não deve chegar para pagar a luz e a água.
Qto a abanar consciências, tem razão, e por isso mandei o "post" para os jornais e vou mandá-lo para o Ippar, pois aquilo está sob a sua alçada.
De qq forma o pior vai ser qdo a IURD sair do Império. O filme é conhecido:
Irá aparecer um construtor que o irá comprar ou querer comprar para lá construir um edifício, pois ali o terreno vale ouro! A CML, o IPPAR e o MC não vão querer exercer o direito de preferência, porque irão dizer que o dinheiro faz falta para outras coisas, por exemplo acabar com a pobreza, blá, blá,blá (já viu quantas vezes foi usado o argumento "barracas por demolir", ou "manter o preço do pão e do leite"?), e, depois, vão ter que ser os cidadãos a manifestar-se.
Se se sairem vitoriosos e o Império ficar de pé, isso quererá dizer que um daqueles três organismos o comprou... mas continuará sem saber o que fazer dele, como continua sem saber o que fazer com uma série de património.
A incompetência, a falta de imaginação, a falta de coragem para tomar resoluções a vários níveis (e no que toca às velhas salas de cinema o problema central não é a lotação, ou as condições de exibição, o DVD ou o vídeo, mas sim o mercado de distribuição e exibição que está completamente estrangulado e mal regulamentado!) é reinante neste país, cara amiga (já viu há qto tempo anda a CML a brincar com o projecto para o edifício d' A Capital, que albergava os Artistas Unidos, e a quem prometeram recuperar o edifício (propriedade da CML!!)? Há 4 anos certos! E vai ficar tudo na mesma nos próximos quatro, aposto!).
E investidores privados como era um Vasco Morgado, por exemplo, há muito que são uma raça extinta em Portugal.
Uma possibilidade era o investimento estrangeiro, mas os espanhóis (que são esses que ainda perdem tempo connosco ... ) estão mais interessados em outro tipo de actividades. O que resta? Os brasileiros do Tivoli.
Ou então há esses investimentos pontuais, de encher o olho (ex. MTV Awards, Rock in Rio), em que nós só damos o local. Tudo o resto é chave-na-mão; por isso vêm hoje, mas amanhã podem não vir mais. Esse tipo de coisa é óptima para entreter os mais desatentos: enchem-se manchetes, mobilizam-se milhares de espectadores. O resto, que importa?
O CNC? Coitados, já têm tanta coisa de que falar (só da nossa parte já têm denúncias sobre a Casa Garrett, os Inglesinhos, o Tália, o Capitólio, e as antigas casas dos governadores da Torre de Belém e do Forte do Bom Sucesso)que qualquer dia dão em doidos.
Agradeço a sua resposta mas deixo aqui outra pergunta: Quem vendeu ou deixou vender?
É preciso que este caso seja conhecido mais amplamente para que haja indignação pública e pelo menos, servir de alerta para evitar tentações futuras de vender edifícios destes a seitas destas que não têm um pingo de sensibilidade para preservar um edifício destes.
É lamentável a situação que narra e que, no fundo, era previsível.
No cinema Império, além de cinema, houve grandes concertos, nomeadamente de jazz. Aí tocaram as orquestras de Count Basie (anos 50) e Quincy Jones (anos 60).
É pena que o presente seja o que é e que o futuro não se adivinhe melhor, a avaliar pelo (de)uso que A Câmara Municipal de Lisboa/PSD deu ao São Jorge.
Com a sua permissão, vou divulgar este post no meu blog sobre jazz - o Jazz No País do Improviso!: www.bizarrologia.com/jazz.html
Caro João
Obrigado pela visita e pelo comentário. Faça o obséquio de o divulgar como quiser.
Cara Odete
O Império foi vendido à IURD durante o último mandato de J.Sampaio, transição J. Soares. Na altura, nem a CML nem o MC, via IPPAR, execeram o direito de preferência, nem ninguém se mexeu para nada. É certo que a Net não era um instrumento de fácil acesso e divulgação como é hoje (alguém duvida que com a Net actual, teríamos ficado com Eden ou sem Monumental?), mas o eco foi diminuto...
Concordo consigo no que diz sobre as seitas mas acho que neste caso concreto, sem a IURD já não teríamos Império. Agora, há que estar atento às barbaridades que lhe vão fazendo, e preparar uma campanha qdo a IURD o puser à venda...que o vai pôr, mais cedo ou mais tarde.
Nesta coisa das velhas salas de cinema, o mais desesperante é assistir-se ao imobilismo das gentes do cinema e do teatro, e aos jogos de bastidores dos empresários, senão veja-se:
1. No caso do Alvalade, cerca de 2 anos antes dele ser demolido, mandei cartas a uma série de personalidades ligadas a essa áreas, minhas vizinhas e vizinhas do Alvalade (Lauro António, Fernando Lopes, Isabel de Castro, etc..). Resultado: zero, nem uma resposta. E depois vão dizer para os jornais que guardam memórias do Alvalade, mais do restaurante Vává, etc.
2. A mesma coisa no caso do Odéon (em que até contactei com a Madalena Iglésias, que me prometeu ajuda!), com a agravante de ler coisas nos jornais completamente falsas e mirabolantes, como tido sido ditas por Filipe La Féria, "aquilo está a cair, precisa de obras de mais de 700 mil cts., vivem lá drogados, desinteressei-me", ou de Paulo Branco, "desisti de comprar o Odéon, pois o preço é muito caro". Enfim ...
3. Por fim, a Cinemateca - uma instituição e uma gente por quem tenho muito apreço - que preferiu que o MC gastasse milhares de contos a construir 1 mini-centro comercial de cinema, nas traseiras da sua sede, só seu, a empenhar-se até ao fim numa solução de sala-museu do cinema para o Capitólio, ou Odéon (extensível, porque não, ao antigo Cinema Central, no Palácio Foz).
Obrigada pelos seus esclarecimentos. Nada sei sobre o potencial económico da IURD (nem quero) mas se até têm dinheiro para comprar aviões particulares...
Concordo 100% consigo sobre o poder da net - suscita e amplia a indignação que falta num povo amorfo.
Fiquei sensibilizada com a divulgação do novo projecto de net solidária (um dos meus pontos fracos)- PROXIMIZADE - aderi participando e já estabeleceram contacto comigo.
Vou estar atenta logo à noite ao Club de Jornalistas, na :2, justamente sobre o poder dos blogues/jornalismo dos cidadãos.
No Sábado vou estar com o CNC numa visita guiada à Igreja do Menino de Deus e se o Dr. Oliveira Martins lá estiver, vou falar sobre o Império.
Isso mesmo, aproveite a ocasião para falar nisso. E espero que a Igreja do Menino de Deus tenha sido efectivamente restaurada em todos os aspectos, não só (e ao que parece) a nível das telas... já que a última vez que lá entrei, há cerca de 5 anos, aquilo estava tudo podre.
Venho dizer-lhe que fiquei maravilhada com a Igreja do Menino de Deus.
Vale bem uma visita atenta e demorada como a que nos proporcionou o CNC.
Pena é que só esteja aberta das 7h às 9h por falta de voluntários para a proteger de intrusos menos desejados.
Bom fim de semana.
Ainda bem que a igreja está recuperada, então. De facto, a única vez que a visitei, foi quase de madrugada, altura em que as irmãs vão orar e abrem as portas da igreja. Ia de viagem, e resolvi aproveitar a "madrugada".
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