06/02/2006

Carta Aberta sobre a Casa Garrett (*)

«Antes morrer de fome do que viver de vergonha»

No próximo Sábado, dia 4 de Fevereiro, perfazem 207 anos sobre o nascimento de Almeida Garrett. Fará também um ano exacto que entregámos à CML, ao IPPAR e ao Instituto Camões, uma petição em prol da classificação da última casa do expoente máximo do Romantismo em Portugal.

Cumpre-nos, pois, enquanto co-autores da mesma, fazer o balanço deste processo lamentável, que culminou com a demolição (acelerada, declarada mas totalmente imprevista), dos nºs 66 e 68 da Rua Saraiva de Carvalho, em Lisboa; matando as aspirações de milhares de cidadãos anónimos, individualidades e entidades de reconhecido mérito cultural que se manifestam em prol daqueles objectivos, desde a morte do escritor, em 1854.

Comecemos pelo princípio, isto é, por num país que se diz desenvolvido se assistir à indiferença dos órgãos de soberania, local e nacional, pela memória de Garrett.

Quem nos governa acha, mal, que pela memória do escritor já muito foi feito: foram designadas ruas com o seu nome, pintaram-se medalhões nos salões dos Paços do Concelho e da AR, baptizou-se a sala principal do Teatro Nacional, e até há pastelarias com o seu nome. Desconheço se actualmente ainda se ensina Garrett nas escolas e, a ensinar-se, se o farão da mesma maneira aborrecida como o faziam no meu tempo, com efeitos contraproducentes inevitáveis; imagino que sim. Portanto já foi feito «tudo», pensarão «eles». Puro engano de quem pensa que a cultura não precisa de uma permanente renovação.

Só assim se explica que durante 152 anos nem a CML, nem os responsáveis pela Cultura, nem os deputados, nem ninguém com responsabilidades tenha defendido publicamente a casa de Garrett. E pior, muito pior do que isso é o facto de em plena «ditadura», em 1971, e face a idêntico projecto de demolição , os cidadãos de Lisboa tenha conseguido que a casa se mantivesse de pé; para agora, 32 anos depois, em plena «democracia», ser feita a vontade do proprietário, ainda por cima membro do governo de todos nós. É caricato, mas ao mesmo tempo, trágico. Dir-me-ão que é a «má moeda».

Em segundo lugar, cumpre-nos resumir cronologicamente as causas do desaparecimento físico da casa:

1. A casa de Almeida Garrett foi adquirida ao BES pelo seu actual proprietário já depois de instalada a polémica, que surgiu, recorde-se, logo após as eleições de 2001.

2. O projecto de nova construção apresentado pelo proprietário foi aprovado pela CML, designadamente pela Vereadora Napoleão e pelo Presidente Santana Lopes, ignorando os apelos dos mais variados quadrantes e, pior, ignorando os pareceres do Departamento de Urbanismo, de que a Drª Mafalda Magalhães de Barros era directora.

3. Uma vez entregue a nossa petição, que tinha mais de 2.300 assinaturas, de cidadãos nacionais e estrangeiros, nunca nenhum dos destinatários, ou alguém a eles ligados, nos respondeu, recebeu ou connosco falou, presencialmente, por telefone ou por qualquer outro meio.

Do IPPAR chegaram mesmo a dizer aos jornalistas que a petição não tinha sido entregue! Também apelámos nessa altura ao PR (que foi Presidente da CML), à AR (Comissão Parlamentar de Cultura) e ao Provedor de Justiça, tendo este último sido o único a responder-nos dizendo que iria estar atento ao problema embora não tivesse competências para mais nada.

4. Passadas semanas, o mesmo IPPAR declara que a casa não tem valor para ser classificada pelo Instituto, mas, após reunião extraordinária do seu Conselho Consultivo, acaba por recomendar à CML que a classifique como Imóvel de Interesse Concelhio, dadas as suas virtudes como casa romântica e o facto de ter sido a última morada de Almeida Garrett.

5. A CML recusa a recomendação do IPPAR, com base em argumentos «surrealistas» das vereadoras Napoleão e Pinto Barbosa (Cultura), como, por exemplo, "os outros nada fizeram antes", "casas como aquela há muitas em Lisboa", "naquela zona já há uma casa-museu, a de Pessoa", "Garrett já tem uma casa no Porto", etc.

6. A AML aprova, em Abril, uma moção pela preservação da casa de Almeida Garrett, com os votos do PS, PC e BE.

7. A demolição está iminente, mas é suspensa em Junho de 2005, «in extremis», por 6 meses (renováveis) por quem a tinha permitido, com o argumento (hélas!) de haver "abundantes e fortes protestos da população e de figuras e entidades de reconhecido mérito (CNC, SPA, Grémio Literário, Pen Clube, alguns deputados da AR, etc.)", remetendo uma decisão definitiva para o novo executivo da CML, e comprometendo-se a iniciar de imediato negociações com o proprietário. Ao que sabemos a intervenção do Presidente do CNC foi decisiva.

8. O proprietário interpõe uma providência cautelar junto dos tribunais. A CML arrola uma série de contra-interessados, defende-se (ver despacho de 4 de Agosto de 2005, assinado por Carmona Rodrigues, então vice-presidente, em que se afirma que "a demolição da casa será uma perda irreparável para a cidade"), e ganha. A suspensão mantém-se.

9. Enquanto co-autores da petição apresentamos aos candidatos um projecto-esboço de projecto de exploração da casa (voltaríamos a entregá-lo, na tomada de posse de Carmona Rodrigues). Nenhuma resposta, nem de uns, nem de outro.

10. Passam-se os 6 meses, há pré-campanha e campanha eleitoral, há férias de Verão, e durante esses 6 meses não só nenhum esforço foi feito pela CML no sentido de encontrar uma solução, como nenhuma negociação foi avançada com o proprietário (como o gabinete do próprio anunciou recentemente).

11. No dia em que se completam os 6 meses de suspensão, é o mesmo Prof.Carmona Rodrigues quem anuncia que a CML não irá prorrogar a suspensão por mais 6 meses, porque não só "não vê valor na casa que o justifique", como "não foi possível chegar a nenhum acordo com o proprietário", o que se concluiu ser falso, pelo que já expusemos.

12. Face à surpresa geral com que foi recebido este "dito(escrito) por não dito(escrito)" da CML, os mesmos agentes que a CML tinha arrolado como seus contra-interessados, em Agosto passado, solicitaram à CML que reconsiderasse e tivesse em conta o que havia sido dito e escrito em Agosto.

A Srª Vereadora do Urbanismo é confrontada em sessão de CML com a pergunta: "Quanto é que custa comprar a casa?". Resposta: "Não sei"! O Presidente da CML é confrontado pelos jornalistas com pareceres dos próprios serviços da CML propondo a manutenção da casa. Não comenta.

13. Apelámos ao Sr.Primeiro-Ministro para que interviesse de modo a mediar as negociações. Não obtivemos nenhuma resposta.

14. Numa altura em que já tinha desaparecido a balaustrada da casa, bem como uma fileira de azulejos oitocentistas, e respectiva placa evocativa, solicitámos reunião urgente com a Srª Presidente da AML, que nos recebeu na hora.

Explicámos-lhe os passos inacreditáveis deste processo e pedimos-lhe para suspender de novo as obras, a fim das partes entrarem, finalmente, em negociações directas, nomeadamente com os novos vereadores da Reabilitação e da Cultura, até aí inertes, mas afirmando publicamente coisas como "não é possível fazer-se uma casa-museu dado que não existe nenhum espólio no local" ... como se o escritor tivesse lá morrido há dias, e quando se sabe perfeitamente onde se encontra o espólio!

15. O nosso pedido foi bem aceite pois a suspensão verificou-se durante 9 dias. Ninguém soube explicar como, nem quem tinha dado a ordem de suspensão.

16. É tornado público um acordo CML-proprietário-arquitecto com vista à preservação da memória de Garrett na futura fachada. Trata-se de uma solução "à portuguesa", do tipo Cinema Edenm, ou edifício Heron-Castilho. Por isso tem o nosso mais profundo repúdio.

17. Aproveitando a nova suspensão das obras, e demonstrando falta de sentido de oportunidade, o Vereador Sá Fernandes anuncia, Quarta-Feira, dia 18 de Janeiro de 2006, que vai propôr em sessão de CML, dia 25, a discussão de propostas para a casa de Garrett.

18. Somos surpreendidos com a informação de que a casa havia sido quase toda demolida, entre Quinta-Feira e Sexta-Feira, dias 19 e 20 de Janeiro.

19. A AML reúne dia 24 e, por iniciativa expressa da Srª Presidente, é aprovada a constituição de uma comissão de análise aos procedimentos relativos ao caso da Casa Garrett. Esperamos, sinceramente, que as responsabilidades sejam de facto apuradas, e que os culpados sejam punidos disciplinar e judicialmente.

20. Aquela que foi a casa que Garrett mandou decorar como seu reduto privilegiado e que tem a pouca sorte de estar numa rua de Lisboa «longe da vista ...»; pela qual se bateram dezenas de milhar de pessoas ao longo dos anos, já não existe!, para gáudio dos incompetentes, dos incultos, dos insignificantes de nota de pé de página, e dos especuladores imobiliários que fazem desta cidade uma cidade cada vez mais feia e com menor qualidade de vida.

Em todo este processo infame e indigno do séc.XXI e de pessoas civilizadas, há, contudo, que agradecer expressamente aos jornalistas, muito especialmente àqueles que no DN, Público, SIC, RTP, Antena1, JN, A Capital, O Independente, Expresso, Jornal da Região, Metro e Destak, têm sido incansáveis na forma como nos têm dado voz, lutando, também eles, por uma Lisboa melhor.

Mas há que dar graças também à «Net», que tudo vai transformando, passo a passo, dia a dia, por mais que haja quem não o aceite, e que, mais tarde ou mais cedo, se vá arrepender disso.

Paulo Ferrero, Pedro Policarpo e Bernardo Ferreira de Carvalho

(*) Esta carta foi publicada na imprensa nos jornais Público (na íntegra), no DN e no JN, no passado Sábado, dia 4. A todos o nosso obrigado!

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