27/03/2006

"Não temos dinheiro, mas criatividade e imaginação", diz Gabriela Seara

In Público (26/3/2006)

"Espantoso". É assim que a responsável pelo urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa qualifica o interesses dos investidores imobiliários por Lisboa. E, de há tempos para cá deu-se uma mudança: acham que construir para a classe média pode ser o futuro. "

Espantoso é a Srª Vereadora achar espantoso o interesses dos "investidores" imobiliários, como lhes chama. E só quem não conhece os últimos 30 anos de Lisboa é que poderá achar espantoso esse facto. Lisboa tornou-se o melhor repasto da especulação imobiliária, sob todos os pontos de vista.

"Concretamente, o que mudou nos serviços?
Implicou uma enorme máquina por trás, nos serviços da câmara, a prepararem propostas com grande nível de exigência, sobretudo as que tinham a ver com planeamento. De um momento para o outro, uma direcção municipal que, apesar de estar formada há três anos, tem uma autoridade que não tinha. Porque o presidente encara a Direcção Municipal de Planeamento como uma direcção por onde têm que passar, forçosamente, coisas que, no passado, não passavam. Fizeram-se planos de pormenor para várias zonas da cidade que a direcção municipal nem conhecia
."

A Direcção Municipal não conhecia várias zonas da cidades, portanto. Ou então a CML é a maior barafunda desde que Babel se desmoronou.

"Trata-se de uma nova cultura?
(...) Durante muito tempo, e acho que isto é muito nacional, os técnicos, para se salvaguardar da cobardia dos políticos, resguardam-se. Isto porque os políticos, geralmente, não exercem a sua função que é decidir
."

Ah! Grande CML. Competência na decisão, determinação na acção. Lisboa está no bom caminho, portanto. Onde é que já ouvimos isto?

"Rapidamente fizemos o arquivo digital. É um processo que tinha começado no anterior mandato, a medo, apenas com uma máquina digitalizadora. Agora temos mais três e aumentámos os turnos para dois, de oito horas cada."

Estamos, portanto, a falar de algo que não o Arquivo Municipal de Lisboa, terceiro-mundista dos sete costados, situado por detrás do sol posto, com instalações confrangedoras, burocracia novecentista e em que os dossiers de cada número de polícia estão a cair de podres, por culpa do excessivo manuseamento. A CML nunca ouviu falar de micro-filmagem, pois não? "Digitalização do Arquivo" é a blague de toda a entrevista.

"Qual é a estratégia para a reabilitação dos fogos devolutos municipais?
É preciso fazer o seu levantamento, ver o que é possível fazer, recorrendo a parcerias público-privadas. A câmara tem fogos pela cidade toda. Dos que já foram identificados, reservei dez para desenvolver pequenas residências universitárias. Mas este património devoluto tem que servir para outras coisas: para funcionários da câmara, que vivem a sua grande maioria fora de Lisboa, ao abrigo de uma proposta do vereador Sá Fernandes que foi aprovada; para jovens, classe média, cooperativas de idosos, entre outros
".

Estas afirmações são as mesmas de sempre, pelo que constato que o uso da cassete já se alastrou às diversas bancadas e aos mais ínfimos dos redutos. Fica registado.

"Se não há capacidade orçamental há alguma coisa de substantivo que possa ser feito? Há. Não temos dinheiro, mas criatividade e imaginação (...)."

Reconheço que criatividade e imaginação são coisas que não faltam à Srª Vereadora, basta ver quão imaginativo é anunciar-se e fazer-se um percurso pedonal cultural pela Avenida da Liberdade, assinalando-se o C.C. Palladium, o Aparthotel Eden, o Hard Rock Café, o Tivoli Fórum, e muitos outros, como sendo casos exemplares deste ou daquele estilo, e soluções a elogiar quando são, isso sim, atentados urbanísticos (pato-bravescos na sua quase totalidade) que tornaram a Avenida num mero cemitério de esplendores defuntos, contando-se pelos dedos de uma mão os prédios que estão bem conservados ou que foram bem reconstruídos. Organizar-se visitas guiadas à Avenida é mais do que imaginação e criatividade: é puro surrealismo.

"(...)Por isso é que a classe média abandonou Lisboa nos últimos 20 anos. Não se criaram condições."

A classe média não abandonou Lisboa nos últimos 20 anos, Srª Vereadora, mas sim nos últimos 40 anos. Nem se criam. Além do mais deixa-se crescer a periferia e procura-se a melhor maneira de colocar quem lá mora a trabalhar em Lisboa, como se fosse essa a questão.

"Os investidores já perceberam que é aí que está o negócio, nesse grupo, na classe média."

O negócio está na especulação imobiliária, Srª Vereadora. Está em comprar-se um prédio nas Avenidas Novas, a cair, com 1-2 inquilinos, de preferência velhotes, jogar na lei da vida, e deitar tudo abaixo para construir andares com metade do pé direito, etc., etc. Está, portanto, na substituição compulsiva e continuada do senhorio tradicional pelo senhorio banco/construtora. No património que só é classificado no papel. No PDM que não serve para nada. Na letargia de quem detém o poder. Na indiferença do lisboeta, preso na dependência da TV, de quem marcou o golo do seu clube, e do emprego, regra geral, miserável.

"Foi aprovado o Plano de Urbanização da Avenida da Liberdade e Zona Envolvente. É possível trazer moradores?
Não. A lei do ruído é extremamente restritiva, é um eixo terciário por imposição da lei do ruído. Infelizmente. Hotéis sim...
Sim, porque podem fazer investimentos na insonorização que empreendimentos para habitação não podem fazer, porque o retorno do investimento é superior. Há todo um processo de reabilitação daquela zona, dos teatros, do Parque Mayer, vão justificar a existência desses hotéis.
E diminuir o ruído? Ao fazer a pedonalização das laterais diminui-se o ruído. Mas mesmo assim não há possibilidade de construir habitação ali. Recebi vários pedidos de informação prévia para a Av. da Liberdade para habitação. Tive que dizer que não. A aposta é incrementar habitação nas encostas da Avenida da Liberdade
."

Esta é uma afirmação que diz tudo sobre quem nos governa em Lisboa. E só a ideia é ridícula, pequenina. incompetente. E dá-nos o lamiré do que nos resta se continuarmos assim por muitos mais anos.

PF

1 comentário:

Anónimo disse...

É mau saber que a CML não acredita/não quere levar moradores para aquela zona.

Não percebo porque é que podem existir hoteis ali, e habitação não. A tecnologia de insonorização há de ser a mesma, digo eu... A justificação do investimento é algo falaciosa, já que o preço do metro quadrado ali, não é mau de todo.

Por outro lado é permitido construir prédios e mais prédios com vista e "ouvidos" virados para o eixo norte-sul...

Não acho que seja a lei do ruído a "restrição", a restrição é o ruído propriamente dito, que a CML devia tentar comabter/reduzir.

JBC