20/12/2009

Participação cívica: "Incomodem! Por que é que não incomodam mais?"

in Público, 20-12-2009 - Por Por Graça Barbosa Ribeiro, Ana Henriques, Aníbal Rodrigues

Envolvimento na resolução de problemas pode e deve ser maior, dizem entidades e especialistas

O alfinete de cabeça amarela mantém-se vai para dois meses espetado ao fundo da Rua do Alecrim, num mapa virtual de Lisboa povoado de pontinhos vermelhos.

Cada ponto representa uma queixa por resolver. "O local é crítico a nível de limpeza, mas é regularmente limpo", escreveram os serviços camarários, à laia de desculpa, numa nota anexa ao alfinete que teima em não passar a verde.

As centenas de transeuntes, muitos turistas incluídos, vindos do Chiado, todos os dias se deparam com o cenário de imundície quando desembocam no Cais do Sodré: latas de cerveja e de sangria, restos de lixo e um cobertor uns metros adiante, sinal de que alguém sem abrigo tomou como sua a zona defronte do prédio devoluto. A escassas centenas de metros do local, os serviços responsáveis pelo sistema de queixas on-line que recebeu a reclamação da Rua do Alecrim dizem que mantêm o sítio debaixo de olho. O queixoso escreveu que na zona convivem alegremente ratos e baratas.

Depois de uma fase em que era difícil aceder ao sistema de queixas on-line do Na Minha Rua - uma cópia do londrino Fix My Street -, as estatísticas começam a falar por si: em Outubro foram resolvidas 84 das 193 queixas recebidas; em Novembro 59 de 185; e já este mês foram solucionadas 19 reclamações das 73 que chegaram. Os buracos no asfalto e a falta de pintura das faixas de rodagem são das queixas mais frequentes.

Ângelo Mesquita, director municipal e responsável pelo serviço, admite que os números ainda não são satisfatórios. "Por vezes pedem-nos para limparmos prédios que são propriedade privada, o que só podemos fazer com uma ordem do tribunal. Também nos enviam reclamações cuja resolução é da responsabilidade de outras entidades..." Foi o que aconteceu esta semana, quando a zona da Avenida Almirante Reis ficou diversos dias sem iluminação pública: "A avaria era da EDP, mas foi à câmara que as pessoas se queixaram." E a autarquia não conseguiu acelerar a reparação da rede eléctrica, pelo que a rua ficou várias noites às escuras.

Falta interactividade

Um dos problemas do Na Minha Rua é a falta de interactividade: o munícipe pode ver se o alfinete virtual correspondente à sua queixa já passou a amarelo ou a verde, mas não há ninguém para o contactar ou dar explicações. "Às vezes, uma resposta em tempo é mais importante que uma solução fora de tempo. Sobretudo para encorajar o uso do direito de cidadania", observa o sociólogo Manuel Villaverde Cabral.

Mesmo sem ter olhado para o decréscimo do número de queixas diárias deste sistema - de 18 queixas diárias no mês de lançamento baixou para 12 neste momento -, Villaverde Cabral sabe do que fala quando usa o termo "entupimento". Os canais de reclamação existem mas são menos usados do que podiam ser, porque os cidadãos "antecipam o fracasso" das suas queixas e desistem antes mesmo de as apresentarem, habituados que estão a esse entupimento e à derrota na relação com quem pensa estar acima de si. "É o resultado de vários séculos de burocracias", considera.

Encarregue, juntamente com outras personalidades de prestígio, de gizar uma carta estratégica para Lisboa, o investigador do Instituto de Ciências Sociais João Seixas delineou diferentes formas de participação dos cidadãos na vida da maior cidade do país. Não descobriu a pólvora: em cidades como Paris funcionam, há algum tempo, os conselhos de cidadãos, grupos de munícipes que influem decisivamente na vida do seu bairro e da cidade. Nalguns casos são escolhidos para esta função de reflectir sobre os problemas da cidade através de sorteio. É o chamado "empowerment" cívico. "Permitir a participação dos cidadãos não é dar-lhes migalhas" de poder, frisa João Seixas. "E o seu aumento de poder não equivale a uma diminuição da responsabilidade dos eleitos."

Se se pensar que as cidades constituem um terreno privilegiado para a inovação democrática, a dimensão do desafio sobe de nível. Mas em Lisboa ainda há muito caminho a percorrer, como explica: "A cidade não detém uma comunidade política urbana consistente. As elites continuam pouco interessadas nas problemáticas da cidade."

Orçamento participativo

A criação, na autarquia, de um pelouro do associativismo e da participação cívica é outra sugestão do investigador, que pensa que há ainda muitas competências a descentralizar, nomeadamente em matérias como o orçamento participativo. Este mecanismo cria a possibilidade de serem os cidadãos a decidir onde gastar parte das verbas da autarquia. Lisboa usou-o pela primeira vez em 2009, e a votação para as prioridades a eleger em 2010 começou segunda-feira. Outras autarquias do país também aderiram a este mecanismo. Mas é possível aprofundá-lo, fazendo-o descer à escala das freguesias ou de agrupamentos de freguesias.

Carnide é, desse ponto de vista, uma freguesia exemplar. As três centenas de sapatos que, por estes dias, se acumulam defronte da junta são disso prova: este ano, o presidente desta autarquia local, o comunista Paulo Quaresma, pediu aos habitantes e às instituições da freguesia - sejam centros de saúde ou esquadras - que lhe fizessem chegar nesta quadra um sapatinho com um desejo colectivo escrito num postal. Houve quem falasse numa piscina, outros acham que o que faz mesmo falta é um parque infantil. O calçado deu origem a uma exposição de rua. Quanto aos pedidos, pelo menos parte deles serão inscritos no plano de actividades da junta, que, como tem meios escassos, se baterá pela sua concretização junto da câmara.

Paulo Quaresma admite que não é um homem querido do presidente do município, tantas as reclamações que lhe faz chegar: "Sou incómodo."

Este antigo professor primário meteu o mesmo vício no corpo dos moradores de Carnide, a quem pede opinião para tudo e mais alguma coisa. Por isso, quando a câmara se ofereceu para construir uma nova escola na freguesia as suas primeiras palavras foram: "Calma aí, vamos negociar." E as 16 salas de aula inicialmente previstas acabaram afinal por ser acompanhadas de um recreio coberto e de um espaço desportivo que não estavam incluídos no projecto inicial, mas que a população reclamou. Desde 2002, quando assumiu pela primeira vez a presidência da junta, que pratica esta gestão participada: "As pessoas não se podem demitir da intervenção." E os frutos são visíveis: "Nos últimos actos eleitorais a freguesia ficou seis a dez por cento acima da média nacional de afluência às urnas." Há um ano, a junta foi premiada pelo Observatório Internacional de Democracia Participativa por um projecto de promoção da cidadania junto de crianças e jovens.

O prémio de Matosinhos

A vida de Francisco Vidinha corria bem até ao dia em que alguém se lembrou de lhe colocar um vidrão à porta de casa, na Rua Serpa Pinto, 326, em Matosinhos. "Quase tropeço nele quando saio de casa", lamenta, acrescentando que "a situação é particularmente penosa aos fins-de-semana em que, normalmente, depositam garrafas até cerca das duas horas da madrugada."

Como ninguém gosta de ouvir vidro a partir quando dorme um sono descansado, Francisco Vidinha apresentou, a 20 de Novembro, uma queixa através do site da Câmara de Matosinhos, na secção Voz do Munícipe. O protesto de Francisco Vidinha, assim como vários outros, está disponível, on-line, no site da Câmara de Matosinhos, acompanhado da respectiva resposta municipal: "Informamos que o vidrão vai ser transferido para a Rua 1.º de Dezembro."

Noutros casos, a eficácia não é tão grande, mas também não poderia ser. Como no caso de Alfredo Pinho, que se queixou do ruído provocado pelos automóveis que constantemente passam na auto-estrada A28. A câmara declinou responsabilidades, mas indicou a concessionária de auto-estradas a quem este cidadão se deve dirigir.

Graças ao seu esforço de modernização administrativa, a Câmara de Matosinhos recebeu, em Setembro último, um prémio internacional da Microsoft, para "Melhor Projecto de Serviço ao Cidadão". O que enche de orgulho o presidente da autarquia, Guilherme Pinto. "A Câmara de Matosinhos tem os melhores serviços on-line do país", atesta.

O presidente da câmara acrescenta que estão ainda a desenvolver um sistema para colocar on-line todos os processos relacionados com urbanismo. No futuro, será possível ao cidadão consultar, num computador, em que ponto ou em que departamento camarário se encontra, por exemplo, o pedido de licenciamento de obra que pretende.

O presidente na rádio

Neste concelho vizinho do Porto existe também um programa na Rádio Clube de Matosinhos, com cerca de 20 anos de existência, em que o presidente da autarquia responde aos telefonemas dos cidadãos e às perguntas colocadas pelo jornalista. Um sucesso, segundo o director desta rádio, João Lourival. Mas o programa tem estado suspenso, por falta de comparência de Guilherme Pinto, desde que este foi reeleito na presidência da câmara. O autarca explica porquê: "Não dá para falar com todos os cidadãos que querem ligar. Por isso, quero ver se se remodela o programa com mais abertura aos cidadãos."

De Matosinhos para o concelho vizinho, João Cottim Oliveira é o provedor dos cidadãos com deficiência na Câmara do Porto e na Área Metropolitana do Porto. Em cada uma destas instituições recebe entre 250 a 300 reclamações ou pedidos de informação por ano. Na autarquia portuense, as queixas prendem-se com conflitos entre vizinhos nos condomínios mais antigos, via pública e serviços. Quanto a informações, a procura de emprego domina claramente, seguindo-se os benefícios fiscais associados à compra de casa e de carro.

A escala muda no caso da Área Metropolitana do Porto, composta por 16 concelhos, alguns de perfil mais urbano e outros mais rurais. Aqui, o grosso das queixas recebidas por João Cottim Oliveira é sobre problemas de transportes. Nos pedidos de informação, o emprego volta a dominar, mas há também muito pedidos sobre educação para crianças com necessidades especiais.

O provedor dos cidadãos com deficiência considera "muito positiva" a taxa de sucesso na resolução das queixas que lhe são apresentadas. No próximo ano, promete desenvolver iniciativas associadas às comemorações dos 100 anos da República Portuguesa. Entre elas, estará uma aplicação informática, dinâmica, que deverá estar disponível no site da área metropolitana até final do próximo ano. Nessa aplicação, o cidadão poderá ficar a conhecer os sítios para onde pode deslocar-se em cadeira de rodas ou canadianas.

Ajuda ao consumo

Já o Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto abriu em Maio de 1995 e até ao fim do passado mês de Setembro recebeu 45.219 pedidos de informação/reclamações. No ano passado, por exemplo, cerca de 3700 pessoas recorreram aos serviços deste centro. Nos outros anos, o número total foi aproximadamente o mesmo. A grande maioria das queixas prende-se com banca/crédito, seguros e comunicações.

Existem cerca de 1900 empresas que contrataram com o centro e aceitam as suas decisões, entre as quais gigantes como a Portugal Telecom, EDP ou Vodafone. Por isso, não espanta que, nos cálculos de Isabel Afonso, directora do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto, a taxa de sucesso na resolução de problemas ronda "60 a 70 por cento". Por outro lado, muitas vezes os cidadãos são informados sobre os seus direitos e percebem que não têm razões para reclamar. "A fase de informação é extremamente importante e, por vezes, permite que o conflito nem se chegue a instalar", destaca Isabel Afonso.

Por seu turno, a Metro do Porto orgulha-se de uma "taxa de satisfação de 75,9 por cento, a mais elevada taxa de satisfação no nosso país entre os diversos operadores de transportes públicos". Mas, ainda assim, registaram já cerca de 2000 queixas desde o início deste ano. Curioso é verificar que 87,03 por cento destas queixas têm a ver com aplicação de multas aos utentes. Restam 9,63 por cento sobre o serviço e 3,34 por cento em relação a obras da Metro do Porto.

Também surpreendente é verificar que a queixa mais comum recebida por Carlos Brito, provedor da Sociedade de Transportes Urbanos do Porto (STCP), diz respeito ao acolhimento por parte do condutor, a par dos clássicos atrasos. Mas há também muitas reclamações por o autocarro passar mais cedo do que o previsto. O cancelamento de viagens - muitas vezes a primeira do dia - é outro aspecto que origina muitas queixas, assim como as consequências das greves.

Queixas em Coimbra

Depois de quatro anos como provedor do Ambiente e da Qualidade de Vida Urbana de Coimbra, o segundo a exercer o cargo, Massano Cardoso, epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina, tem um apelo a fazer: "Incomodem! Por que é que não incomodam mais?" No período em que esteve em funções, correspondente ao último mandato da Câmara de Coimbra, não foram mais de cem por ano os munícipes que se lhe dirigiram para fazer valer os seus direitos.

"Talvez seja uma questão de cultura. Os portugueses queixam-se muito, mas entre eles, nos cafés, nos transportes públicos, nos locais de trabalho. Raramente formalizam as queixas e, neste caso, nem há o argumento do medo de represálias: se se tivessem dirigido a mim, seria eu a queixar-me por eles, o anonimato seria garantido", diz.

Para além de serem poucas as queixas, muitas foram feitas pelas mesmas pessoas, "munícipes com uma forte consciência cívica". Outros deram-se ao trabalho de enviar e-mails (provedoria.ambiente@cm-coimbra.pt) ou de telefonar (239 724167) para o "insultar". "Recebi mensagens incríveis, a maior parte a criticar-me por causa do "tacho"." Dá uma gargalhada: "Não deve haver muitas pessoas que, não ganhando um cêntimo pelas funções que exercem, gastando alguns euros para as exercer e sendo insultadas por o fazerem, desejem, ainda assim, ser incomodadas."

Diz que foi com "voluntarismo e consciência cívica" que, apesar da pouca participação dos cidadãos, manteve, ao longo dos anos, a visibilidade da provedoria. Tanto por ter tornado públicas as posições e emitir pareceres por iniciativa própria, como também por ter levado a sério a independência que lhe é garantida, apesar de ser eleito pela assembleia municipal sob proposta da câmara.

Enquanto em funções, não só contrariou e criticou a câmara como gerou ou alimentou polémicas, como no caso da extinção do serviço Ecovia (de estímulo ao estacionamento fora do centro da cidade) ou do protesto contra a passagem do IC2 pela Mata do Choupal.

Massano Cardoso disse não ter qualquer indicação sobre se existe a intenção do executivo municipal, novamente presidido pelo social-democrata Carlos Encarnação, de voltar a propô-lo para o cargo. Se tornasse a exercê-lo, afirma, uma das suas prioridades seria tentar obter recursos para divulgar a provedoria e apelar à participação dos munícipes. "Há demasiada passividade, demasiada. E isto incomoda", queixa-se.

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