25/12/2009

«Por uma cidade que se respeite»

Uma cidade que se respeite não permite que um proprietário tenha o seu prédio degradado, a cair, abandonado, com falta de pintura, destelhado, entaipado, em risco de incêndio ou derrocada. Não permite. Ponto.

Uma câmara municipal digna desse nome multa, castiga, reprime o desleixo e negligência de quem for dono de um prédio nessas condições. Se não tiver instrumentos legais robustos para o fazer, exige-os ao Governo da República. Se não o conseguir, tem que se fazer porta-voz da indignação dos munícipes.

O Governo do país tem a obrigação de impedir que os centros das nossas cidades estejam sujos, ocos e cariados. Tem o dever de tornar muitíssimo dispendioso este mau hábito de quem não cuida da sua propriedade urbana. Tem o interesse - num país antigo, peculiar e turístico como o nosso - de garantir que os nossos centros históricos estejam impecáveis.

Não existe o direito de ter um prédio a cair. Tal como não existe o direito de guiar um carro sem travões ou poluente. Não interessa se o compraram ou herdaram. O carro tem de passar na inspecção periódica. O mesmo deveria valer para o prédio: tem de estar em boas condições, ou o proprietário terá de pagar pelo dano e risco que provoca a outrem.

Um prédio decadente faz reverberar o desleixo. Baixa o valor da sua rua ou do seu bairro, incluindo o daqueles prédios cujos proprietários, mais conscienciosos, trataram de cuidar e manter em boas condições. Um prédio a cair representa um risco de segurança para quem ali passa, para o solitário inquilino que às vezes lá resta, para os vizinhos.

A propriedade de um prédio não é coisa que venha sem obrigações. Esse é um equívoco que engendra outros equívocos de todas as partes envolvidas, sem excepção: a ideia de que os exemplos de prédios integralmente ocupados com rendas baixas (cada vez menos) podem servir de desculpa para situações de incúria em prédios praticamente vazios; a ideia de que o Estado pode ser o primeiro proprietário negligente; a ideia de que às autoridades públicas cabe, sempre, pagar toda a factura do rearranjo dos prédios. O Rossio de Lisboa foi recuperado com dinheiros públicos há uma década. Hoje tem prédios com telhados cobertos de folha de alumínio. Lamento, mas isto não é cidade que se respeite.

O presente de Natal para toda a gente que gosta da cidade, da cultura e de música aí está: ardeu o prédio onde ficava o Hot Clube de Lisboa, um dos mais antigos clubes de jazz da Europa. Perguntava um leitor do PÚBLICO ao saber da notícia: será que vale a pena fazer TGV e novos aeroportos para mostrar uma cidade vazia? Sob o impacto do momento, o exagero é desculpável, porque toca na ferida. As pessoas não vão apanhar o TGV para Madrid para ficar a olhar para a estação ferroviária. Vão para ver o Museu do Prado.

Aquilo que Portugal e Lisboa esquecem - com o novo-riquismo desculpável de quem se encontra em algumas rotas da moda - é isto: ninguém volta ao hotel de charme para olhar de novo para o mesmo prédio esburacado em frente.

Andámos anos a discutir um ridículo projecto para o Parque Mayer e deixámos o Hot Clube ao abandono. O salão do Conservatório está em ruína. O Pavilhão Carlos Lopes também. Não temos um lugar no centro da cidade para receber exposições internacionais que atraiam centenas de milhares de visitantes. Achamos natural que o candidato evidente para essa função - a Praça do Comércio - sirva para a burocracia do Estado. Ou então, que se faça lá um hotel de charme. Temos, não o nego, muito charme no abandono.

Rui Tavares

in «Público, 23-12-2009

FOTO: Calçada de São Vicente 48

6 comentários:

Anónimo disse...

Absurdo. Se o Rui Tavares fosse o proprietário de um desses prédios antigos da Baixa, compreenderia logo o problema.

Problema que desaparece, em todas as cidades, numa década, assim que se retiram os condicionalismos de fixação de rendas.

Anónimo disse...

Penso que o proprietário deste imóvel é a Santa Casa da Misericórdia, por isso não se trata de nenhum senhorio sem posses para fazer as obras necessárias. Isso ou simplesmente vender o prédio, algo que também se recusam a fazer.

R Dias disse...

Bem dito! Essa de uma inspecção periódica aos edifícios, é uma boa ideia!!!

Examinava-se o estado do edifício, bem como se detectavam eventuais irregularidades/ ilegalidades, como antenas parabólicas, acrescentos e anexos, marquises, caixas de ar-condicionado, etc.

Na verdade até já existem este tipo de inspecções, por exemplo, à rede de gás. Se não está em condições é fechada, e fica-se logo a saber o que é necessário fazer para colocar as coisas em ordem.

Anónimo disse...

Por lei, os prédios urbanos são obrigados a procederem a obras de reparação/manutenção a cada 8 anos.
Neste como em muitos outros casos, não é um problema de enquadramento legal, mas sim de vontades e recursos financeiros.
Neste, como em outros casos, a desejada intervenção do governo da república fez-se de forma desastrosa, quando condicionou rendas após 46 anos de congelamento e criou incentivos para a construção de habitação nova nos suburbios das principais cidades, para agradar autarcas e empreiteiros.
Neste como em outros casos, a construção nova sempre foi opção relativamente à reabilitação, mais cara, técnicamente mais complexa e igualmente sujeita às burocracias legais.
O que nos diferenciará de outras capitais europeias é o facto dos senhorios/proprietários não terem condições financeiras para a realização de obras, nem a devida compensação caso as queiram ou possam fazer.
Desde 23/12 que os Municípios podem delimitar áreas de reabilitação urbana e declarar a venda ou o arrendamento forçado dos prédios cujos proprietários não queiram ou não possam fazer obras (além do recurso à expropriação ou obra coerciva já permitidas na anterior legislação). No entanto, depois de tantos anos a destruir o património edificado e a desordenar o espaço urbano, o problema já não se resolve com a reabilitação das casas, é preciso trazer gente para essas casas e para pagar essas obras. E trazer gente para isso, obriga à criação de boas (melhores) condições de mobilidade e de vida, que nas chamadas grandes cidades cada vez existe menos.
Caso contrário, as Câmaras que se aventurarem a adquirir casa devolutas ou em más condições de salubridade, arriscam-se a se transformarem em meros promotores imobiliários/construtores, o que não parece ser a solução.
Luís Alexandre

Anónimo disse...

http://www.cm-lisboa.pt/archive/doc/CML_LevantamentoParqueEdificadoDevoluto.pdf
Desconheço a actualidade desta base de dados
Luís Alexandre

Anónimo disse...

Pois, afinal o prédio é da Santa Casa, de nomeação governamental, e apostada na especulação urbano de braço dado com os empreiteiros, arquitectos e imobiliárias que estão a destruir Lisboa.

Mas quem na Câmara aplicou essas leis, que por acaso em Portugal datam do tempo de D.Manuel (sim, 500 anos)foi Santana Lopes, esse mauzão sem cultura, sim, porque cultura só a tem a raça de esquerda.

Já agora, o palacete do séc XVI ao Conde Barão, onde estava o B.Leza, tem as janelas abertas para entrar chuva, degrada-se a cada dia ... e o proprietário é ... a Caixa Geral de Depósitos ... sim essa da Culturgest