05/06/2008

SOS logradouros da Estados Unidos da América - Uma ode à minha mãe

A minha mãe não sabe o que é a Internet, não imagina o que é um blogue - guarda ainda numa caixa pesada de plástico a sua Olivetti velhinha e não faz ideia que nos teclados de computador não é preciso fazer tanta força como no teclado AZERTY da máquina de escrever que lhe foi fiel durante anos e anos no seu serviço.
A minha mãe é uma velhota chata, resmungona, de cabelo muito comprido atado num carrapito, que vive no perímetro da Avenida Estados Unidos da América e Avenida de Roma há quase 40 anos, depois de ter deixado os montes da Beira Alta.
Mas se há coisa que a minha mãe gosta mesmo nesta vida são as árvores e os jardins da sua avenida, mesmo que o que reste deles, da sua grandeza dos anos 60, seja um quase nada, que ela contraria, vai contrariando, lançando sementes de flores coloridas nos canteiros nus, e colocando cactos nos coutos mortos das árvores que foram cortadas, sem que outras tivessem sido plantadas no seu lugar.
E vimo-la vacilar, pela primeira vez na vida, pensámos que morreria de tristeza, há uns dois anos, em pleno Natal, quando a minha mãe deixou de sair de casa para ir ao café das velhas e ao Pingo Doce com o seu carrinho das compras topo-de-gama, porque a Câmara lhe cortou mais de 50 árvores que tinham a sua idade, que envelheceram junto dela.
Recuperou, felizmente. E no Verão, ela vai com garrafões de 5 litros de água regar os espetos que foram plantados no lugar de choupos gigantescos, porque a autarquia pura e simplesmente nunca as regou.
A minha mãe ligou-me agora há pouco, aflita como só ela consegue estar por causa de um jardim, numa inquietude que quase sempre resulta em comprimidos de nitroglicerina por debaixo da língua.
Diz que as funcionárias da empresa subcontratada pela Câmara de Lisboa estão a arrancar tudo o que restava dos canteiros dos seus jardins - os jardins de Deus, como ela os chama, porque nascem, crescem, brotam sem que nenhuma mão humana se aviste por aquelas bandas. E enumera: arrancaram os acantos, as alteias, as jalapas, tudo o que restava.
Diz que ligou para o LX Alerta. Que lhe disseram que já conhecem o seu nº de telemóvel. Que hão-de responder (nunca respodem). Negaram-lhe também o acesso ao telefone do departamento de espaços verdes da CML.
A minha mãe não sabe o que é Internet e anda pelas ruas amparada por uma bengala. Tem gravadono telemóvel os números do Lx Alerta e da Polícia Municipal, esta última que nunca vem rebocar os carros que estão esacionados em cima do passeio e da passadeira, em frente à Segurança Social, mas que, porém, insiste em autuá-la quase todos os trimestres pela velhota teimar em dar os restos de pão seco aos pombos da rua.
Em 30 segundos de Google, nem tanto, descobri o dito número dos espaços verdes e telefonei à minha mãe para que ela o anotasse no bloco que fica na primeira gaveta da cozinha - o bloco dos números importantes.

Ninguém lhe vai dizer nada. Nem hoje, nem depois de amanhã. Seguramente, o vereador dos Espaços Verdes não irá plantar nada no sítio dos acantos, das alteias e das jalapas, onde há mais de dez anos que não existe rega - na minha infância arrefecíamos os dias quentes de Verão com a rega automática da cidade-jardim que me viu crescer.

Dentro de poucas semanas, os logradouros de um dos maiores Prémios Valmor da cidade de Lisboa (Avenida Estados Unidos da América nºs 12 a 40) serão uma reminescência do Alentejo, com palha queimada no chão. E, ao que parece, sem resistirem nos canteiros os Jardins de Deus que vão consolando a minha mãe.

E a minha mãe, que é uma velhota catita, vai morrendo aos poucos com a cidade.

7 comentários:

Arq. Luís Marques da silva disse...

Ainda bem que há quem entenda o porquê da tristeza revoltada de quem, como eu, nasceu, cresceu, brincou nesta cidade, ao vê-la de tal forma violentada; passeei pelas mãos dos meus avós, nas suas ruas e nos seus jardins e por isso, sinto cada árvore arrancada, cada prédio destruído, cada fonte esgotada... A verdade é que sinto a sua agonia dorida a cada dia que passa, provocada por aqueles a quem Lisboa nada diz e que a prostituem violentamente, como proxenetas á espera da gratificação.
Bem haja e um grande cumprimento á Sr.a sua mãe.

Paulo Ferrero disse...

Belo post, Diana, e diga à sua Mãe que já poucas pessoas assim ... aliás, ontem, na sessão descentralizada (faltou, Diana!), 90% das pessoas só se preocupou com o ... pópó. Sinceramente, começo a ficar cansado ...
Bj

Paulo Ferrero disse...

Belo post, Diana, e diga à sua Mãe que já poucas pessoas assim ... aliás, ontem, na sessão descentralizada (faltou, Diana!), 90% das pessoas só se preocupou com o ... pópó. Sinceramente, começo a ficar cansado ...
Bj

Anónimo disse...

E que papel decisivo desempenham a sua, a minha e tantas outras mães, filhas das beiras e de uma geração que abraçou a cidade quando ela ainda era menina e só gatinhava.

Elas representam um equilíbrio fundamental na cidade. Sabem bem o valor de um largo para se jogar às escondidas ou à apanhada; o poder dos jardins perfumados que representam a ponte até às suas origens - afinal potenciando a relação ser humano – natureza, ao mesmo tempo que minimizam os efeitos do cinzento subjectivo proveniente do ruído, da multidão, dos edifícios, enfim, das cidades que se podem facilmente tornar infernos.

Sabem coisas hoje consideradas simples e por isso mais facilmente esquecidas.

A sua, como a minha mãe, ainda vão ficando por cá, como se o sentido destas suas lutas fosse um qualquer vício irreparável que se tornou o fio das suas vidas.

Contudo, vida como prisão, porque as mantém enraizadas ao betão que entretanto as cercou.

E agora? Vêem a cidade assim, crescida e puta. E os seus filhos, nós e alguns outros, a reclamar, a reclamar, e nada.
O que é que apetece fazer?

A vontade é aconselhar as anciãs de Lisboa a reencontrarem o perfume das dálias nos montes ainda meninos das beiras, onde o GNR ainda acorre aos pedidos de socorro e os presidentes de Freguesia e de Câmara são muitas vezes e ainda os que por lá cresceram, aqueles que limparam o cuzinho aos fetos, por todo o lado espalhados, e que mesmo recordando que eles arranhavam p’ra caraças, defendem-nos até à morte.

É frustrante, dói e cansa.

Diana, a sua mãe não vai morrendo aos poucos, a sua mãe é uma corajosa e uma resistente.

Já a cidade, essa, morre exponencialmente de uma doença galopante.

Reitero o que já disse, isto só lá vai com uma revolução:

A dos pensantes para fora de si contra os protectores do umbigo.

E nada de partidos políticos, que esses estão entalados até ao topo do intestino (não em linha recta).

Anónimo disse...

Desculpem meus senhores mas nestas coisas de vida e de morte - sem ironia - entendo que há que deitar mãos à obra.
E desculpem-me também se deixo dito que reclamar aqui é fácil, e que o que é fácil não dá grande proveito.
Essa senhora merece mais. E faz mais. Liga para a câmara, insite, conhecem-lhe o número.
Se vos moi tanto reclamar e não ser atendido, pensai na senhora, mais moída ainda pela tristeza das árvores perdidas e da sua inutil reclamação.
Vá, imaginem que um destes dias acorda e lá lhe puseram de novo umas belas árvores.
Ela não sabe o que é a net. Há mentiras tão piedosas.
Plantem-lhe umas árvores vá. E digam que foi a câmara. Chamem os vizinhos, semeiem felicidades. Façam. Mesmo que ela venha a saber, vai ter ganho conseguir unir uns quantos por uma árvores.
Um gesto vale mais do que mil palavras.

Anónimo disse...

Pois é meu caro anónimo, há os que empregam as tais mil palavras para dizer alguma coisa de jeito; há outros que, com um milhão delas, só dizem asneiras...

Anónimo disse...

Caro anónimo... Concordo consigo plenamente... este Sr Ferrero emprega milhões e milhões de palavras...crítica tudo e todos desde uma beata no passeio, a um carro estacionado indevidamente...Acções? claro k sim... tem um blogue onde faz a sua justiçacom palavras quiçá aprendidas nos manifestos anti... qualquer coisa!!!
Parabéns pela sua coragem