08/04/2012

Lisboa quer ter peixe sobre a mesa mas não gosta de barcos na margem Por Carlos Filipe



Os profissionais questionam: então, e a pesca?, deixou de ser uma figura tradicional de Lisboa? Há nove anos que o fazem, desde que encerrou a Docapesca de Pedrouços, transferida para o Mercado Abastecedor da Região de Lisboa, já no concelho de Loures. O interesse nacional pela realização de uma prova de vela forçava-os a sair. O projecto falhou e os homens do mar e do rio por lá ficaram. A pouco mais de um mês de novo interesse público declarado por outra prova de vela, ainda lá estão. E ainda em luta.


Por Carlos Filipe in Público

Há nove anos que os pescadores receberam ordem de despejo de Pedrouços e promessas de construção de um porto de pesca, mas que tarda em se concretizar



Agarrados à vedação de arame da Administração do Porto de Lisboa (APL), sob o viaduto em Algés, à vista dos passageiros da linha férrea, as tarjas de pano pintado denunciam sinais de longa reivindicação: "Roubaram-nos o porto de pesca; secretário de Estado ignora as pescas; mais miséria; pesca e vela, vela e pesca - sim; não entendemos esta falta de respeito quando o país mais precisa." Ao fundo, agora mais um grande terrapleno, na fronteira territorial entre Lisboa e Algés, as máquinas avançam com os trabalhos, orçados em 3,9 milhões de euros, dos dez milhões anunciados pelo anterior Governo como investimento para a requalificação do espaço e a sua transformação em marina de recreio. O antigo porto de pesca é uma miragem. Boa parte dos edifícios já foi demolida.
A construção naval, a navegação, as Descobertas, são pedras basilares da tradição náutica portuguesa. E Lisboa teve o seu papel na epopeia. Mas se também a cidade portuária dela sempre fez parte, com maior ou menor dimensão do seu porto de contentores, a actividade piscatória é importante actividade económica para a capital, ou não tivesse sido, segundo dados oficiais de 2011, o segundo local em volume de descarga de pescado mais importante do país, logo depois de Matosinhos.
Como pode ser assim se não tem um porto de pesca? "Com todo o esforço e com a continuada luta dos pescadores, que há muito reclamam o que lhes é de direito. Se aqui ainda estamos [na doca de Pedrouços] é porque é nossa, nós pagámo-la com os nossos impostos. E só dela saímos quando nos derem a garantia de que teremos o porto que nos têm prometido", diz Joaquim Piló, do Sindicato Livre dos Pescadores e Profissões Afins.
É no pequeno edifício cercado por máquinas, dir-se-ia que uma ilha daquele espaço também histórico, onde se descarregava e comercializava o peixe [pela Docapesca], que o antigo pescador, na Mauritânia, do bacalhau na Terra Nova, vai ficando com aspereza na voz: "Fomos novamente recebidos pela APL para combinar a nossa saída daqui, para encostarmos numa doca em Santos, diante dos restaurantes que não nos querem lá, que não tem boas condições, sem dar garantias de segurança de embarcações e dos pertences dos pescadores e os apetrechos da pesca. Fá-lo-emos enquanto durar a prova de vela [a Volvo Ocean Race, em escala entre 31 de Maio e 10 de Junho], mas voltaremos se não responderem ao nosso caderno reivindicativo."

"Só promessas"

O sindicalista vai discutir o assunto com o secretário de Estado do Mar no próximo dia 18. "Exigimos garantias de que vai ser feito um porto de pesca em Paço de Arcos, como foi prometido", acrescenta Joaquim Piló. O Conselho de Ministros decidiu, em 2003, que teriam de sair dali para que se pudesse preparar o espaço para receber a prova America"s Cup, associada a um projecto turístico- -imobiliário, naturalmente ancorado na componente náutica. "Perdemos para Valência [Espanha]. E sabem os portugueses o que lá fizeram? Os espanhóis não só fizeram a prova como construíram um porto de pesca. Aqui, nada, só promessas. Então do ministro [José Luís] Arnaut. E destruíram isto tudo. A lota era bem-sucedida, dava milhões à Docapesca, que tinha segunda venda - a primeira para os pescadores, até à meia- -noite, depois para a Docapesca. Até a Escola de Pesca foi desmantelada, que tinha todas as valências, até dormitório. Agora há o For-Mar, apenas um sucedâneo."
Sem poder descarregar o pescado em Pedrouços, a venda da frota de Lisboa, com cerca de 300 embarcações, envolvendo mais de 700 homens, tem de ser feita na Trafaria ou em Cascais. "Foi um prejuízo enorme para a Docapesca e os pescadores, e também se gastou muito dinheiro na Trafaria, que não tem condições", lamenta Joaquim Piló, acrescentando que se chegou a pensar em fazer o porto naquele local, abaixo dos silos, mas que terá ficado reservado para contentores.
Em resposta ao PÚBLICO, a APL esclarece que foi "em função de determinações governamentais de há dois anos, num processo articulado com a Direcção-Geral de Pescas e acompanhado pelos representantes dos pescadores, que foram preparadas alternativas, como o abrigo de pesca em Santos, já prontas para os acolher, e a melhoria das condições de atracação e guarda de aprestos na Trafaria e na Cova do Vapor". E adianta que também está em estudo de viabilidade de um porto de pesca em Paço de Arcos.
A APL explica ainda que a construção de uma nova infra-estrutura ultrapassa as suas competências, já que "o compromisso assumido foi o desenvolvimento daquelas acções, assim como a construção dos melhoramentos na Cova do Vapor e da Trafaria, o primeiro em 2012/2013 e o segundo a partir de 2014".
O secretário de Estado do Mar, Manuel Pinto de Abreu, numa nota à comunicação social, em 21 de Março, fez saber que sempre houve a preocupação de "assegurar as condições de trabalho dos pescadores", daí as obras realizadas no porto de abrigo de Santos e os melhoramentos das condições do porto da Margem Sul, da Trafaria e da Cova do Vapor, estando igualmente a ser estudada a possibilidade de realizar um porto em Paço de Arcos [concelho de Oeiras]".
Segundo especifica, o novo porto seria junto das actuais instalações de pesca e integrado com a marina de recreio que a autarquia prevê para a zona, no Plano Director Municipal. "Estão feitos os estudos-base, hidrográficos e geotécnicos, e está a ser revisto lay-out geral, face aos resultados obtidos", conclui.

Mais duas marinas

O presidente da Câmara de Oeiras, Isaltino Morais, anunciou na terça- -feira, citado pela agência Lusa, que a autarquia conta construir "duas novas marinas, uma na Cruz Quebrada - investimento privado - e outra em Paço de Arcos, investimento autárquico, e que pretende ir ao encontro da elevada procura", acrescentando que o objectivo é dotar o concelho de infra-estruturas que possam receber grandes eventos desportivos internacionais.
Um dia depois, Paulo Vistas, vice- -presidente da autarquia, na apresentação da Volvo Ocean Race, também destacou o potencial do turismo náutico para o concelho. O vereador do Desporto, segundo a Lusa, admitiu o interesse de Oeiras em implantar uma marina para iates de grande porte junto ao terrapleno de Algés: "Estamos a desenvolver um estudo com a APL de ocupação da área entre a Torre dos Pilotos e os Fermentos Holandeses e Alto da Boa Viagem."
O representante dos pescadores já assumiu que a hipótese de parte da frota de Lisboa - perto de 60 embarcações que se acolhem em Pedrouços - ficar sediada em Paço de Arcos seria bem acolhida, desde que de forma permanente e em condições. "Mas o melhor mesmo era ficarmos onde estamos, pois a actividade piscatória nunca foi incompatível com o recreio. Nós convivemos bem com a náutica de recreio e nunca estivemos contra a regata. Mas se não querem a pesca em Portugal, se só querem iates, acabe-se com ela. Depois, não venham é dizer que não há peixe suficiente."

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