05/02/2007

Baixa Pombalina - que soluções à vista? (I)

In Público (5/2/2007)
A opinião de Filipe Lopes

«A Proposta de Revitalização da Baixa Pombalina, já analisada por muitos, também me sugere, naturalmente, alguns reparos, salvaguardados que ficam o reconhecimento do profissionalismo dos seus autores e da justeza de algumas orientações e opções.
Antes de mais, e como exigência fundamental, entendo que, tratando-se da área urbana mais importante de Lisboa e do País, esta Proposta deverá, antes de levar a qualquer decisão vinculativa, ser discutida em sede pública, onde profissionais e habitantes possam pronunciar-se exercendo assim o seu direito à cidade.
No exercício desse direito, enquanto profissional das matérias urbanas, com destaque para as directamente ligadas a Lisboa, proponho algumas linhas de reflexão e aponto algumas sugestões.
O valor, único, no panorama patrimonial urbano em Portugal, que constitui a Baixa Pombalina (e passo em branco o desajuste da expressão Baixa-Chiado já suficientemente criticado) justificaria uma atitude técnica e política diversa da que informa a referida Proposta. Esta fundamenta-se numa filosofia de intervenção que, iludindo os valores reais a defender, entrega esta jóia da coroa nas mãos de futuros especuladores, à revelia do bem comum e do seu direito à identidade. Pelo que as perguntas que ficam no ar serão, mais ou menos, estas: são os autarcas investidos de poder divino? Não o sendo, como é convicção comum, em nome de quê decidem eles sobre uma cidade, que é construção histórica e colectiva, e decidem em matérias tão determinantes que lhe alteram o ser? Não será esta prática corrosiva dos princípios democráticos que, em princípio, nos regem? O drama é que Lisboa não está só. É confrangedor visitar, hoje, qualquer cidade do País, abandonada às sacratíssimas mãos de alguns poderosos e ignorantes autarcas. Feito o desabafo, voltemos ao assunto, ficando claro que muito do que vou dizer já outros o disseram. Apenas lhes trago a força de mais uma voz.
A Baixa Pombalina consubstancia um gesto urbanístico fundador duma cidade iluminista que foi, e continua a ser, referência incontornável no panorama urbano europeu, porque ele criou, ao mesmo tempo, uma unidade de tecido urbano e um objecto patrimonial de alto valor estético. E este valor estético não reside em cada um dos edifícios de per si, mas antes é o respectivo conjunto que se constituiu nesse objecto, de uma indesmentível unidade, feita da diversidade de respostas a necessidades e condicionalismos vários.
Em 1755, a Baixa Pombalina nasceu como o novo Centro de Lisboa e do País, tendo por coração a Praça do Comércio, esta, com uma expressão única de porta aberta ao mar, cais de partida e de acolhimento, imagem duma nação que, nesse século XVIII, procurou reencontrar uma linha de rumo que lhe assegurasse o seu lugar na comunidade internacional. Daí, o seu indiscutível carácter monumental, próprio para nele se sediar o poder político.
A praça chama-se "do Comércio" em homenagem aos comerciantes que financiaram a reconstrução e significando a importância que toma, na sociedade, a nova força, então emergente, das trocas comerciais, apoiadas e reestruturadas pela acção política do Marquês. Ela é o local central por excelência das funções nobres. Assim, tendo a Presidência da República e a Assembleia os seus locais próprios na Cidade, é ao Governo com os seus Ministérios que ela pertence, de direito. Funções de poder e de representação devem, pois, ficar neste espaço, voltando aqui as que dele foram afastadas. Por isso, substituir a presença do Ministério da Justiça por um hotel e prever comércio nas arcadas que, a meu ver, deveriam ser a montra dos Ministérios no seu contacto com o público ( exposições, informação, atendimento, etc.), constitui prova de não entendimento da dimensão simbólica da Praça.
No seu conjunto, a força monumental da Baixa pombalina anula o objectivo, expresso na Proposta, de a tornar competitiva "com os novos espaços comerciais emergentes". A Baixa Pombalina não tem que competir com coisa nenhuma, porque, muito simplesmente, não há nada, no País, que possa competir com este espaço, senhor de uma função histórica, cultural e identitária própria, pensado e construído, com génio, para ser o Centro da Cidade e do País.
Acontece, porém, que a Baixa entrou em degradação, por razões de índole vária. Para além da desertificação, comum aos centros antigos, está na origem deste declínio uma série de opções irreflectidas, tomadas na ausência de qualquer pensamento sobre o conjunto da cidade, que este centro comanda, e sem ter em conta as mais valias interiores a este espaço de privilégio.
Assim se foram fazendo deslocalizações desastradas de que aponto alguns exemplos.
A retirada da Faculdade de Arquitectura do Convento de S. Francisco, que afastou da vivência do centro os que irão trabalhar sobre as realidades urbanas, vivência que constitui um valor didáctico único.
A deslocalização dos Tribunais, que afastou do centro os numerosos intervenientes nesta actividade, bem como a saída das redacções e rotativas do Bairro Alto, vizinho da Baixa, que lhe animavam as noites. Do mesmo modo, lhe faltam os estudantes da Faculdade de Letras, que percorriam o espaço Chiado, quer a caminho da Biblioteca Nacional, quer deambulando entre as numerosas livrarias, milagrosamente mantidas. Agora, será mais o Conservatório. O pior é isto mesmo: aos erros do passado continuamos a acrescentar os do futuro. E, aqui, estou a pensar na anunciada paralisação dos Hospitais Centrais, mais ou menos directamente ligados a este território.
Vejamos. É sobejamente óbvio que todas estas actividades não poderiam continuar contidas em espaços que se tornaram insuficientes. Porém, não tivesse prevalecido a ideia desastrosamente errada da bondade da concentração, e muitas e ricas alternativas se teriam encontrado, no sentido da complementaridade do centro com o restante corpo urbano, ficando vivo o primeiro, equilibrado e digno o segundo.
Perante a necessidade de ampliação, deveriam criar-se novas unidades de equipamentos noutros locais, mantendo as existentes, e dando a estas, de preferência, funções de excepção e de qualidade. Ter-se-iam evitado, deste modo, edifícios monstruosos como o Palácio de Justiça ou o Hospital de Santa Maria , cuja falta de escala está, como sabemos, posta em causa por especialistas de saúde, e segregações como a Cidade Universitária, que separa a Universidade da Cidade e cria um grande espaço mono funcional.
Sendo as deslocalizações uma das causas do definhamento da Baixa, torna-se imperativa a definição da regra simples de inviabilizá-las. É necessário ampliar? Criem-se instalações descentralizadas, que irão suscitar, onde se localizarem, a diversidade funcional, característica essencial dum tecido urbano vivo e equilibrado.
Infelizmente, a nossa prática urbana processa-se ao invés. Veja-se a deslocalização dos serviços da própria Câmara , que concentraram no Campo Grande serviços dispersos pela cidade, em dias de circulação electrónica da informação, que dispensa a deslocação de processos, deslocação que foi, paradoxalmente, o grande argumento a favor da concentração.
No meio de tanto dislate, daqui saúdo, aliviado, a manutenção da Presidência, Vereação e serviços de representação, na Baixa. Sim, porque podia o diabo tecê-las e dali se faria um hotel de luxo ou, quem sabe, talvez um Casino

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