05/02/2007

Alienação de património público: Antecedentes, receios, interrogações

In Nº 32 da revista «Pedra e Cal»
Por Nuno Teotónio Pereira

«Nos anos mais recentes, desde que o problema do défice das contas públicas se tornou implacável, que o anúncio da venda de património do Estado tem sido recorrente, suscitando naturalmente dúvidas e inquietações. E ainda há pouco a Câmara de Lisboa decidiu colocar em praça alguns edifícios de propriedade municipal – o que logo ocasionou perplexidades e mesmo protestos, que levaram ao recuo no propósito da venda do palácio Pombal.
Desde a extinção das ordens religiosas em 1834 que a reconversão para novos usos de edifícios emblemáticos tem sido prática corrente entre nós – fenómeno potenciado pelo défice crónico, que só conheceu alívio durante o salazarismo e nos primeiros tempos dos dinheiros europeus. Foi assim que alguns conventos passaram a quartéis, hospitais, faculdades, museus, etc., com intervenções muitas vezes descuidadas do ponto de vista da preservação do património arquitectónico. Mais recentemente, foram numerosos os conventos onde se instalaram pousadas, mas desta vez com projectos de elevada qualidade, em que a do Bouro é o caso emblemático.
E o que aconteceu com os conventos tem-se, ao longo dos tempos, verificado também relativamente a outros tipos de edifícios, nomeadamente palácios – como a Universidade Autónoma, instalada no Palácio dos Condes do Redondo, em Lisboa. E ainda instalações fabris, de que o caso da Universidade da Beira Interior, na Covilhã, já evocado nesta página, é um eloquente exemplo do que se pode e de como se deve fazer. Ainda no domínio da arquitectura industrial outras intervenções se podem apontar em Aveiro, Faro, Tavira, Lisboa, Matosinhos, Fundão, Guimarães e Portalegre. Podem registar-se ainda os casos da Universidade Atlântica, na antiga fábrica da Pólvora de Barcarena, e da Lusófona, em Lisboa, ao Campo Grande – que de fábrica passou a quartel e de quartel a universidade, tal como a Real Fábrica de Panos, na Covilhã.
Deve aliás ser assinalado que o surto de cursos universitários privados que ocorreu há anos atrás levou ao aproveitamento e preservação de um grande número de edifícios singulares nas principais cidades, sobretudo em Lisboa. Mais uma vez conventos, mas também palácios e antigas fábricas. Nesta lista, que não se pretende exaustiva, vale a pena nomear alguns casos de operações exemplares, como nos conventos das Bernardas e do Beato, em Lisboa. E, no Porto, as magnificas reconversões da Cadeia da Relação, da Alfândega e do convento de Santa Clara.
Mais recentemente, e a exemplo do que sucede noutros países, também o sector imobiliário começa a interessar-se pelo aproveitamento de edifícios existentes, nomeadamente de carácter industrial, transformados agora em lofts, do que constitui um caso assinalável a antiga fábrica de lâmpadas Lumiar, na avenida 24 de Julho, em Lisboa. Mas assiste-se também a soluções mais do que discutíveis, como as do antigo Colégio dos Inglesinhos, no Bairro Alto, onde se constrói um condomínio fechado, e do convento de Arroios, à Praça do Chile, ameaçados ambos de controversas mutilações, ainda mal esclarecidas.
É com este pano de fundo que agora se fala, no quadro da alienação de Património do Estado, em vender vários edifícios singulares, como as Penitenciárias de Lisboa e de Coimbra. Como também o convento da Graça, em Lisboa. Trata-se de processos a que é necessário estar-se atento, no sentido de impedir que, a pretexto da resolução do défice, se cometam atentados irreversíveis ao património edificado. Do mesmo modo que à anunciada instalação de um hotel numa ala do Terreiro do Paço – uma proposta inaceitável, no meio de um conjunto de ideias excelentes, com origem no Comissariado da Baixa-Chiado.»

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