Aqui fica o esclarecimento de Fernando Correia de Oliveira:
«Posso parecer suspeito, já que me bato há mais de dez anos pelo restauro do relógio em causa, paradigma da situação em que se encontra praticamente a totalidade da chamada relojoaria férrea, grossa, monumental ou de torre do país. Mas se o IPPAR (agora IGESPAR) não tinha dinheiro, ainda bem que a iniciativa privada tomou conta do assunto. Não há almoços grátis, como se sabe, e a publicidade ao mecenato cultural é coisa corrente em qualquer cidade do mundo, muitas delas mais ricas do que lisboa.
Permitam-me ainda que junte em
attachment a comunicação que fiz a 28, 29 e 30 de Maio, na sala do arco onde se encontra o relógio, e referente ao tema Tempo e Poder na Cidade de Lisboa.
Obrigado e ao dispor
Fernando Correia de Oliveira»
--------
O Tempo e o Poder em Lisboa
Fernando Correia de Oliveira*
Tempo é poder e quem detém o poder quer marcar o tempo. Foi sendo sempre assim, ao longo da História, e Portugal não é excepção. Quanto mais concentrado o poder, fosse ele religioso ou civil, mais unificado o tempo, através de marcadores simbólicos que regulavam os anos, os dias, as horas da comunidade, os ritmos de trabalho e ócio, de reza e de divertimento.
Lisboa, conquistada aos mouros em 1147, é feita capital do reino em 1256 e, a partir de então, com o rei e a corte a viverem na cidade, ganham importância o tempo e os seus medidores instalados nesta margem do estuário do Tejo.
Quando falamos de medidores de tempo, estamos a falar, nessa época, da chamada relojoaria férrea ou grossa. De mecanismos pesados, usando como força motriz cordas enroladas e com pesos suspensos, vindo daí a expressão ainda hoje usada: “dar corda ao relógio”. Mecanismos metidos em armaduras de ferro, daí a expressão “relógios de gaiola”, e nesses primeiros tempos sem a utilização de parafusos para a sua fixação, daí dizer-se que eram do tipo “cavilhado”. Com escape tipo “folliot”, uma espécie de serra que ia soltando os seus dentes de forma mais ou menos ritmada, numa régua que se ia movendo de um lado para o outro, permitindo antes do mais o toque de sinos e não tanto o mostrar as horas.
Não se sabe ao certo quando é que os relógios mecânicos foram introduzidos em Portugal, embora seja provável que tenham vindo com as ordens religiosas que ajudaram a dar forma ao território no tempo da Reconquista.
De qualquer modo, em 1377, a Sé de Lisboa tinha uma torre de relógio, batendo sinos, um mecanismo financiado em partes iguais pelo rei, D. Fernando, pelo Cabido, e pelos homens bons da urbe. Terá sido o primeiro relógio mecânico na capital, feito e mantido por um certo “mestre João, francês”, e sintomaticamente erigido pelos três poderes – nobreza, clero e povo. Como seria normal na altura, esse relógio não teria mostrador – servia para “bater” horas e não para as mostrar. Regulava mais a vida religiosa do burgo do que outra coisa, mas servia também para indicar a hora de recolher a casa, o fechar de portas dos bairros onde viviam as várias minorias – judeus, mouros, através do toque do chamado sino da colhença.
Nesses tempos, quando se comprava um relógio, contratava-se também para toda a vida o relojoeiro que o tinha feito ou algum seu aprendiz, que eram pagos com dinheiro mas também com azeite, que servia para “temperar” o mecanismo, o termo então usado para significar o olear de rodas dentadas e outras peças móveis.
Com D. Manuel I, e a construção do Paço da Ribeira das Naus, o tempo de Lisboa passava a ser mais regulado pela torre do relógio que aí passou a existir e a função de relojoeiro do Paço passa a constar das listas de funcionários. O tempo torna-se cada vez menos sagrado, cada vez mais profano. A primeira imagem desse relógio do Paço data de 1520, já com mostrador, mas apenas com um ponteiro, pois os mecanismos da época eram pouco exactos e o ponteiro dos minutos não fazia grande sentido quando os desvios diários eram enormes.
Com o dinheiro do ouro do Brasil, D. João V mandou reformular o Paço da Ribeira e encomendou uma torre do relógio ao arquitecto italiano Canevari. O edifício ficou rapidamente célebre não só em Lisboa como em todo o país, pela sua opulência e pela qualidade do mecanismo do relógio ali instalado (possivelmente de origem flamenga, como os dois extraordinários exemplares que o rei encomendou para o Convento de Mafra). Forasteiros vindos de toda a Europa também faziam notar o esplendor barroco desta torre.
Mas o terramoto de 1755 faz desaparecer parte de Lisboa, incluindo a torre de Canevari e o que resta desse tempo é um painel, hoje no Museu do Azulejo, onde o Paço e o efémero relógio aparecem.
A reconstrução da capital, sob a direcção de Pombal, previa uma praça esplendorosa em redor do que havia sido o Paço e um projecto de Carlos Mardel contemplava um enorme arco triunfal, com relógio. Isso não passou do papel e o que é hoje o Terreiro do Paço é bem diferente e demorou mais de um século a ser feito. De qualquer modo, e com forte carga maçónica (o próprio Pombal teria sido iniciado como pedreiro livre quando andou como embaixador por Londres e Viena), o Arco de Triunfo da rua Augusta é inaugurado em 1873 com estatuária simbólica do escultor francês e maçon Camels.
Augusto Justiniano de Araújo
O Arco da Rua Augusta, tal como hoje o vemos, terá recebido em finais do séc. XIX um mecanismo vindo do Convento de Jesus, que “não estava preparado para indicar as horas para o lado da rua”, segundo relato da época. Ou seja, era um relógio apenas para “bater” horas.
Foi Augusto Justiniano de Araújo, o fundador da Escola de Relojoaria da Casa Pia de Lisboa, quem o adaptou, substituindo o escape de “folliot” por um de âncora, e o relógio passou a dar e a “bater” as horas aos alfacinhas a partir de 4 de Dezembro de 1883.
O lema de Augusto Justiniano de Araújo era: “Todos os relógios têm concerto”. Pois o Diário Popular de 7 de Dezembro de 1883 dava prova disso, numa local:
“No dia 4, às 7 da noite, ficou completo o assentamento do relógio do arco da rua Augusta. Este relógio é de construção nacional e do estilo do século XVIII. Era do antigo convento de Jesus e não estava organizado para indicar as horas para o lado da rua.
“As modificações para este fim foram feiras pelo sr. Araújo, relojoeiro estabelecido na rua da Boa Vista, nº 164, 1º, assim como o escape que o mesmo artista inventou e que denominou escape Araújo.
“O relógio tem sido visto por muitas pessoas competentes, que são unânimes em considerá-lo um trabalho perfeito, tanto no escape como nas outras disposições.
Coadjuvaram gratuitamente o sr. Araújo nos trabalhos de assentamento alguns distintos membros da direcção da sociedade de relojoaria de Lisboa, e outros cavalheiros dos principais instrumentistas de precisão, da escola do instituto industrial de Lisboa”.
Augusto Justiniano de Araújo nasceu em Valença do Minho em 1843 e faleceu em Lisboa em 1908. Relojoeiro construtor, (“fabrica relógios de torre, parede e precisão”) foi agraciado com a medalha de Prata e Cobre, na Exposição Industrial de 1888. Estabeleceu-se em Lisboa, na Rua Nova do Almada, 81; na Rua da Boavista, 164, 1º – Fábrica de Relógios de Torre; ou na Rua São João da Mata, algumas vezes em sociedade com o seu amigo Veríssimos Alves Pereira, um outro relojoeiro famoso do século XIX português. Exerceu gratuitamente o cargo de director técnico da Empresa Fabril de Relojoaria. Na Exposição Industrial Portuguesa de 1888 apresentou um cosmocronómetro de sua invenção (1886) e construção que desde logo foi distinguido com várias medalhas (existe um exemplar do cosmocronómetro, um relógio de hora universal, na Sociedade de Geografia de Lisboa). Nessa ocasião já tinha construído 23 relógios de torre, não só para o interior do país como para os Açores, S. Tomé, Angola e Brasil. Foi o fundador, em 1895, da Escola de Relojoaria da Casa Pia. É reconhecido como o mais importante e sábio construtor português de relógios de parede e torre dos sécs. XIX e XX. Foi director e fundador da revista “O Cosmochronometro”, provavelmente a primeira do género que houve em Portugal.
Onde aprendeu mestre Augusto todo o seu saber? Provavelmente, grande parte vinha-lhe da intuição, como aconteceu a várias personagens autodidactas do panorama relojoeiro nacional que marcaram o final do século XIX e o início do século XX. Segundo informava “O Comércio de Portugal” de 1881, desde os 9 anos que Augusto Justiniano de Araújo se dedicava à relojoaria. Matriculou-se no Colégio Militar, mas desistiu. Depois, cursou o Instituto Industrial e “aprendeu em boas casas, como as de Wintermantel, Plantier e Gameiro”. Além disso, trabalhou “em oficinas suas e estranhas, procurando pela aquisição de novos processos e instrumentos, estar sempre em dia com os progressos da sua arte, cujos adiantamentos ele diz ter pessoalmente observado em França e Suíça”. Em 1898 requereu à Câmara Municipal de Lisboa o exclusivo para a indicação da hora ao domicílio, através de linhas electro-cronométricas, “como já então se praticava em Berna e outras cidades estrangeiras” (o sistema de indicação do tempo pelo telefone só se efectivaria mais tarde). Trabalhou pelo ideal republicano com Elias Garcia e Manuel de Arriaga.
Manuel Francisco Cousinha
Peripécias várias, avarias, levaram à substituição do relógio já no séc. XX, por uma máquina da autoria de Manuel Francisco Cousinha, um dos grandes construtores nacionais de relojoaria grossa, férrea, de torre ou monumental.
Manuel Francisco Cousinha nasceu em 1894, em Palheiro às Pontes, Sobral Magro, Pomares, Arganil. Foi um dos mais importantes construtores de relógios de torre do seu tempo. Fez parte do Corpo Expedicionário Português (CEP), em França, onde terá aprofundado conhecimentos relojoeiros que já demonstrara intuitivamente, ainda criança. Fundou em 1930 “A Boa Construtora”, Fábrica Nacional de Relógios Monumentais, a funcionar num barracão em Almada, posteriormente remodelado. A fábrica de Almada produziu os mais diversificados e complicados relógios que vendeu para todo o país, ilhas, colónias e Brasil. Um dos mais curiosos relógios de torre que fabricou é o que ainda se encontra, a funcionar perfeitamente, na Torre Salazar (hoje Torre da Paz), em Benfeita, um monumento erguido em louvor do final da II Guerra Mundial e do facto de Portugal não ter entrado no conflito. “O relógio da Torre é um verdadeiro fenómeno de precisão e durabilidade: nunca avariou, nem tão pouco necessitou que lhe substituíssem qualquer uma das suas peças originais”, dizia-se em 2004. Além da venda de relógios novos, a empresa procedia a restauros, e não apenas a relógios – efectuou em 1954 uma reparação ao maquinismo do carrilhão da torre sul do Convento de Mafra. Falecido Manuel Cousinha em 1961, continuou a fábrica entregue aos familiares, tendo falido em 1974, vitima das dificuldades laborais surgidas com o 25 de Abril. Um neto de Cousinha, que se tem dedicado à reparação, restauro e manutenção da relojoaria grossa nacional, vai agora proceder ao restauro estético do velho relógio vindo do convento de Jesus e que foi adaptado e colocado por Augusto Justiniano de Araújo no final do século XIX nesse local, e que se encontra muito degradado. E vai voltar a colocar em funcionamento o relógio que o avô Cousinha fabricou e instalou nos anos 30 do século passado no Arco da Rua Augusta.
O restauro deverá estar terminado em Setembro e, com os seus Ministérios e funcionalismo público, símbolo da centralidade e do poder até aos nossos dias, o “Paço” alfacinha voltará assim a ter um relógio que marcará o tempo da comunidade.
*Jornalista e investigador do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades
Para saber mais, do mesmo autor:
- História do Tempo em Portugal – Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003)
- Cronologia do Tempo em Portugal (Lagonda, 2004)
- Manuscrito Anónimo de Relojoaria na Academia das Ciências de Lisboa (Ed. de Autor, 2005)
- Relógios e Relojoeiros – Quem é Quem no Tempo em Portugal (Âncora, 2006)
- Relógios de Sol (CTT, 2007)
Sem comentários:
Enviar um comentário