09/06/2008

Reabilitação urbana, o seu a seu dono

In Público (9/6/2008)
Mafalda Magalhães Barros

«Tendo lido recentes artigos publicados no PÚBLICO que fazem eco de afirmações do vereador Manuel Salgado, e uma vez que fui um dos intervenientes no processo referido, cumpre-me prestar alguns esclarecimentos.
Diz o senhor vereador que as obras que até há uns meses foram feitas nos edifícios municipais e as intervenções coercivas em São Bento, Mouraria e no Bairro Alto foram um desastre e estão todas paradas por incompetência de quem organizou, considerando absurda a política dos anteriores executivos camarários.
Há que esclarecer que as obras levadas a efeito na R. de S. Bento não foram coercivas, pois tratou-se, maioritariamente, da reabilitação de edifícios camarários, numa artéria central da cidade, habitada maioritariamente por uma população de fracos recursos económicos. Dos 18 edifícios intervencionados (entre 2002-2005) 15 eram municipais, possibilitando que os fogos recuperados no âmbito desta acção fossem ocupados pelos anteriores locatários que agora vivem em habitações condignas, disponibilizando ainda um considerável número de fogos para outros realojamentos. Com cerca de 5 milhões de euros investidos só na reabilitação do edificado, para além do apoio à renovação do Clube Nacional de Natação e da construção de um silo automóvel, só por má informação se compreendem tais afirmações.
Quanto ao Bairro Alto, foram recuperados diversos prédios de habitação, 17 ao todo, sendo 12 municipais, muitos dos quais com fogos devolutos, o que permite criar agora uma bolsa para arrendamento a custos controlados. Na realidade, o desinvestimento actual, e num passado próximo, esse sim, tem sido a causa da degradação do edificado e do espaço público, transformando uma área que estava em franco processo de reabilitação num espaço que actualmente só é notícia pelas piores razões.
Na Rua da Madalena foi feita uma intervenção maioritariamente coerciva, pois incidiu sobre prédios degradados de propriedade particular. Foi uma tentativa de iniciar a recuperação da Baixa pombalina, sendo certo que esta intervenção não esgotava o universo de intervenções necessárias para a recuperação daquele conjunto, há muito entregue à mera especulação imobiliária. Aí também o investimento rondou os 5 milhões de euros. Para além do apoio à recuperação das igrejas da Baixa (S. Nicolau, N.ª Sr.ª da Oliveira, da Madalena e da Conceição Velha) e das do Chiado. É que contrariamente às obras do Rossio que foram apenas de espaço público e de fachadas, estas tinham como objectivo recuperar e permitir novas utilizações das habitações, bem como a requalificação do património histórico dessas áreas centrais.
É que se a herança fosse tão má assim como poderia o senhor vereador anunciar que vai promover o arrendamento de fogos municipais a custos controlados, se não fossem aqueles mesmos que foram alvo de intervenção pelas tais políticas absurdas de reabilitação? Muitas mais habitações, de facto, poderiam ter sido recuperadas com base em empreitadas que não foram finalizadas, como consequência de uma gestão financeira errática que se prolongou pelos anos de 2006/2007, e que agora importa levar a bom termo, tal como estava programado. Esta é a única forma de minimizar as graves consequências provocadas pelos realojamentos maciços efectuados nos bairros de Alfama e da Mouraria, decorrentes do estado de quase ruína do edificado destas áreas históricas.
Aproveito também para referir que algumas medidas recentemente anunciadas nada têm de novo, como por exemplo a da expansão do Museu do Chiado, de que há cerca de 15 anos se fala. Nova, sim, é a ideia de suspender as normas do actual PDM para que na zona da Baixa pombalina se possa proceder a construção nova. Diz o senhor vereador que as obras promovidas de reabilitação não têm nada: é apenas construção nova em edifícios velhos. Afinal de contas em que é que ficamos? Qual é o modelo de reabilitação que se preconiza para aquela e outras áreas consolidadas da cidade? O da obra nova? Dentro da fachada antiga? Ou um outro? Esperávamos que significasse uma intervenção ponderada de modernização, sem a descaracterização total de interiores e de fachadas. A clarificação de um modelo para a reabilitação é algo que urge.
A falta de regulamentos para a intervenção nas áreas históricas habitacionais e a permissividade do Ippar, paralisado por uma reestruturação absurda, que multiplicou serviços e sobrepôs competências, tornando-o incapaz de agir perante os inúmeros casos de lesa-património, levam-nos a temer o pior.
Inúmeras são as notícias que nos dão conta da delapidação patrimonial que vai decorrendo um pouco pela cidade, que vão dos roubos de azulejos às demolições integrais dos interiores, onde se concentrou muitas vezes o que de mais original os nossos artistas e artesãos foram capazes de criar, dos estuques às pinturas murais, das ferragens às carpintarias e aos conjuntos azulejares.
O tal modelo que se anuncia de recuperação da frente ribeirinha não significará, mais uma vez, que se vai virar as costas à cidade histórica, para construir mais uma barreira entre esta e o rio, consumindo as sempre escassas verbas disponíveis, canalizando para a o que poderia ser investido em obras de requalificação da cidade existente, do seu parque habitacional e do seu espaço público?
E quanto às obras coercivas que a câmara muitas vezes efectuou, e que agora tanto condena, foram uma forma de assegurar a reabilitação do edificado, sempre que por questões sociais, de segurança pública, ou por razões patrimoniais tal se justificava. Não sendo o modelo de obra coerciva só por si solução, é um instrumento que a autarquia pode usar em casos pontuais, sendo ainda uma forma de pressão para que proprietários façam as obras e procurem os programas Recria para o seu financiamento. Neste domínio muito há a fazer para apoiar o pequeno proprietário urbano, asfixiado por todo o tipo de taxas e que dificilmente consegue chegar às verbas que o Instituto Nacional de Habitação disponibiliza, pois os processos têm que passar pelas autarquias, que nem sempre dispõem de verbas para a contrapartida que por lei é de sua responsabilidade.
Como me parece que não só de grandes promotores e de mega-empreendimentos vive uma cidade, há que pensar nesta camada da população, no pequeno e médio proprietário urbano, e encontrar formas de o apoiar na reabilitação do seu património que afinal é usufruído por todos.
A tarefa é gigantesca e dificilmente, em pouco tempo, se podem resolver todos os problemas. Mas isso não significa que os que o antecederam não possam ter dado também um contributo positivo. E estas palavras são movidas não só pelo desejo de verdade, como pelo reconhecimento de que o senhor vereador é credor de qualidades que fazem acreditar que pode fazer muito e bem. Mas isso não o deve levar a menosprezar todos aqueles que deram o seu melhor pela reabilitação da cidade de Lisboa, movidos pela força e energia que as boas causas congregam, muitos dos quais continuam a trabalhar na câmara municipal. É que na voragem de tudo condenar não vá por distracção deitar fora o bebé com a água do banho.

Ex-directora municipal da Conservação e Reabilitação Urbana (2002-2005) »

Sem comentários: