In Público (14/6/2007)
Inês Boaventura
«Por algumas horas, António esqueceu as dificuldades com que vive e os problemas familiares; Amílcar enganou a fome que o atormenta diariamente e Bartolomeu deixou as mágoas da viuvez e da velhice na casa em que mora tristemente sozinho há dez anos. Por algumas horas, a Voz do Operário, em Lisboa, encheu-se com centenas de pessoas carenciadas que se deleitaram com a abundância de comida e de bebida e com a oportunidade de celebrar o Santo António com a companhia que demasiadas vezes lhes falta.
Pizza, leitão, sardinhas, cachupa e pão-de-ló fizeram as delícias das centenas de comensais, entre sem-abrigo, idosos, imigrantes e outros cidadãos com carências, que ontem marcaram presença num almoço organizado pela Associação para a Cooperação e Desenvolvimento (Nouni). As refeições, regadas com água, sumos e um vinho diluído para garantir que os ânimos não se exaltavam, foram confeccionadas e servidas com gosto por cerca de 50 voluntários que tudo fizeram para não deixar um pedido por atender.
À aproximação de uma máquina fotográfica ou um bloco de notas, muitos foram os que se esforçaram por esconder os pesados fardos que carregam aos ombros diariamente, mas houve também quem aproveitasse a curiosidade alheia para contar as mágoas de toda uma vida. "Venho aqui porque preciso", diz António, sem vergonha, revelando que a maioria das suas refeições é feita junto à estação de Santa Apolónia, onde "param umas carrinhas" que distribuem comida aos sem-abrigo.
António ostenta com naturalidade um chapéu improvisado a partir de uma folha de jornal, e diz que vive de "biscates" que vai fazendo. Conta que mora em Chelas com um irmão, que paga a renda e as contas da casa, mas pouco mais consegue pôr à mesa além de "feijão e salsichas". Também Amílcar, que mora num quarto e faz as suas refeições na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, confessa, ao mesmo tempo que devora com sofreguidão uma sardinha, que foi ao almoço na Voz do Operário "para comer e beber à fartazana".
Já Bartolomeu, de 78 anos, aproveitou a iniciativa da Nouni para fugir à solidão que o atormenta desde que ficou viúvo, "fez dez anos no dia 1 de Janeiro". "Se não viesse para aqui estava em casa sozinho. Assim estou distraído", diz, gabando a qualidade da refeição e explicando que o segredo para conseguir provar todos os pratos é comer "só um poucochinho de cada um".
Também Elizabete veio "para o convívio" e trouxe consigo quatro netos, o filho que ontem celebrou mais um aniversário, a nora e um sombrero em palhinha que a transformou no centro das atenções. Ao seu lado, Ivan, de dez anos, debate-se com uma perna de frango e conta entusiasmado que antes da farta refeição já esteve "a jogar à bola" num espaço improvisado pela organização.
Igualmente entusiasmado está Eduardo, um açoriano de 33 anos que revela estar a tentar deixar para trás uma vida de toxicodependente, e o seu colega do lado, cuja única crítica é a falta de vinho no copo. "Isto não é todos os dias. Um gajo tem de aproveitar. É porreiro para alguém que não tem nada", diz o primeiro, antes de ser interrompido por alguém que se queixa com veemência da falta de apoio do Estado aos idosos e da sua parca reforma de 252 euros.
"Dar alegria a estas pessoas, dar-lhes os santos populares, dar-lhes aquilo que eles não têm" foi o objectivo do almoço organizado pela Nouni que, como explica Rosa Margarida, contava servir ontem cerca de mil refeições na Voz do Operário a "sem-abrigo, idosos, jovens excluídos e pessoas carenciadas". A associação já tinha organizado iniciativas semelhantes no Natal e na Páscoa, mas o almoço de Santo António, que incluiu exibições de cães, ilusionismo e música ao vivo, foi mais concorrido.
Presente no almoço esteve o embaixador de Cabo Verde em Portugal, Arnaldo Andrade Ramos, que considerou a iniciativa "merecedora de apoio" e lembrou que entre os comensais e os organizadores havia membros da comunidade cabo-verdiana. »
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