18/06/2007

«O Presente Grego» (*)

Árvore europeia da sombra, o plátano não é só um espécime ornamental mas um bem urbano de primeira necessidade. No rescaldo do abate de dezenas de plátanos no Campo Pequeno, a história da descoberta de um exemplar raro, no Jardim do Princípe Real.

Na Biblioteca de Arte, da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, há um pequeno livro, de 1956, intitulado “Árvore de Hipócrates ou Árvore da Saúde”, do médico beirão, higienista, professor universitário e membro da Academia das Ciências, Sebastião Cabral Costa-Sacadura. Tem poucas páginas, mas numa delas aparece reproduzida a fotografia do dia em que foi plantado em Lisboa, o rebento de uma das mais famosas e antigas árvores do mundo, o “Plátano de Hipócrates” (Platanus Orientalis L.), que decorridos mais de 2500 anos, continua vivo, estendendo os seus longos ramos sobre uma pesada estrutura de ferro, na praça pública da ilha de Cós, Grécia.
Segundo escreve o filantropo e octagenário Costa-Sacadura, à época antigo Presidente e Secretário Geral Perpétuo da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, o descendente do “Plátano de Hipócrates” – porque à sua sombra costumava o “pai da medicina moderna”, tratar os doentes a partir de um diagnóstico psicossomático avant-la-lettre – teria sido plantado no dia 9 de Janeiro de 1956, no Jardim do Princípe Real, em Lisboa.
Oferecido pelo rei Paulo da Grécia, pai da actual rainha Sofia de Espanha, chegara à capital através do ministro Vassili Lappas e sua mulher. A fotografia, publicada pelo jornal “Primeiro de Janeiro”, capta o momento em que a senhora Lappas presidindo à cerimónia, integrada no primeiro congresso de Profilaxia Gerontológica, descobre o “propágulo” onde se encontrava protegida a pequena árvore grega.
Volvidos 51 anos – e perante a contínua ameaça que paira sob os poucos espaços arborizados da capital, bem como a memória recente do abate de noventa e sete plátanos do Jardim do Marquês de Marialva, ao Campo Pequeno, na sequência das obras de requalificação da Praça de Touros – será que o histórico e simbólico presente grego ainda sobrevive?
A fotografia do jornal serve como pista. Por de trás da mulher do diplomata, a seguir à multidão que a observa, de chapéu e gravata, vêem-se distintamente as portas e as janelas de dois prédios românticos. Quem vem pelo Largo do Rato e chega ao Jardim do Príncipe Real não os encontra, é preciso passar o ex-líbris, o gigante Cedro-do-Buçaco, avançar em direcção à Rua do Jasmim, e junto aos bancos de madeira, do lado esquerdo, aparecem, por fim, os prédios da fotografia (são os números 1, 2 e 3). Do lado direito, anónima, sem qualquer identificação, esquecida mas vigorosa, encontra-se uma árvore de tronco fortíssimo. Os ramos possantes desenvolvem-se a baixa altura, revestidos de uma folhagem densa, cujo recorte lembra a forma de mãos: eís o plátano grego, o abraço de Hipócrates, a árvore de Pacha Mama dos índios andinos, a Ninfa Europa entregando-se a Zeus, depois de ele a ter raptado sob a forma de um touro branco.
Um jovem plátano cresce a seu lado, se mais descendência houvesse poderiam as árvores abraçar-se como aconteceu nas imediações de Constantinopla. O escritor francês Théophile Gautier ainda chegou a ver esses nove plátanos turcos, nascidos do pé de uma árvore morta: no seu interior cabiam pessoas, passava um cavalo, era uma floresta.
Porque os plátanos, nas suas várias espécies – em Portugal, tal como na Europa Ocidental, predomina o Plátano Comum (Platanus x acerifolia, Aiton, Willd), o Plátano Ocidental (Platanus Occidentalis), por seu turno, é nativo da costa atlântica dos Estados Unidos – é resistente, sobrevive às intempéries, suporta rajadas de vento de mais de 125 quilómetros por hora desde que não tenha sido podado, adapta-se à poluição urbana, recupera depois de ser atacado por várias doenças – apenas a mão humana e o cancro colorido (provocado pelo fungo Ratocystis frimbiata) o conseguem destruir.
A forma peculiar dos plátanos do Jardim da Cordoaria, no Porto, tornando-os parecidos com os embondeiros de Madagáscar, resulta precisamente da vitória sobre uma doença que poucos registaram. “A doença que os deformou deve tê-los atacado ainda jovens: em 1950, nas páginas d`O Tripeiro, João Moreira da Silva, que lhes dedicou um curto apontamento, chama-lhes “verdadeiros monstros”; e há fotos do princípio do século XX que já os mostram com uma forma próxima da actual. Que doença terá sido essa? Moreira da Silva não o diz; e, se algum estudo se fez, hoje parece estar esquecido”, concluem Paulo Ventura Araújo, Maria Pires de Carvalho e Manuela Delgado Leão Ramos, autores do livro “À Sombra de Árvores com História”, Gradiva, 2006.
Tudo parece indicar que ninguém os tratou, tal como Hipócrates acreditava, a natureza possui dentro de si a a solução para doença. O resultado foi a emergência de um árvore troglodita, excêntrica evocação da pré-história quando os plátanos eram contemporâneos dos dinossaúrios e dos fetos arborescentes. “Troncos, rochedos, grenha de braçadas,/ chiar de sonhos, solidão musgosa,/e as folhas caem por entre a limpidez/de um ar sonoro levemente azul”, assim os descreve Jorge de Sena em “Ode aos Plátanos” (Pedra Filosofal, Poemas, Ed. Confluência Limitada, 1950). Mas no conto “A Campanha da Rússia” (Antigas e Novas Andanças do Demónio, Edições 70, 1978) os mesmos plátanos da Cordoaria aparecem de noite, são a companhia mais tranquila numa errância perigosa pela cidade do Porto onde há rabos de mulher que não cabem em automóveis de luxo, pernas com chagas purulentas e marinheiros de navalha em punho.
Árvore ornamental, vocacionada a proporcionar sombra desde a Antiguidade Clássica, o plátano gosta de receber e a todos acolhe: doentes, filósofos, poetas, santos e imperadores. Calígula, por exemplo, deu um grande jantar para quinze pessoas em cima dos ramos de um plátano e ainda houve espaço para os criados trabalharem.
O jornalista Alain Pontoppidan, em “O Plátano”, Temas & Debates, 2001, relata a história de uma árvore anfitriã mal sucedida. Deveria ela ter escondido no seu tronco oco S. João Crisóstomo mas porque não tinha folhas viu o santo ser assassinado pelos ladrões de estrada. Desde então, nunca mais perdeu a folhagem.
Felizmente nem todas árvores passaram por este tipo de provações, mas no tempo de Teófilo, Imperador de Bizâncio, um plátano foi derretido e transformado em moedas. A história é relatada num manuscrito pertencente à Biblioteca do Santo-Sepulcro, em Constantinopla. Conta que no século 9, o Imperador Teófilo mandou construir um plátano de ouro, no qual instalou pássaros de várias espécies e instrumentos musicais igualmente em ouro. Quando passava o vento, para surpresa de todos, uma orquestra áurea cantava. Um dia, o soberano ordenou a destruição da árvore, o metal precioso foi fundido e transformado em moedas que ele gastou até ao fim.


Susana Neves



(*) Crónica publicada na revista Tempo Livre (Junho 2007)

3 comentários:

Gonçalo Cornelio da Silva disse...

Excelente artigo Paulo deverias enviar ao ex-vereador e aos técnicos e serviços zelosos, que tem amputado as àrvores desta cidade.

Paulo Ferrero disse...

É sim, excelente, mesmo. E olharei com outros olhos para este plátano do Cp.Pequeno. Já pedi as fotos mas ainda não mas deram, que são muito boas, também.

E já seguiu missiva para o ex-vereador. Abraço

Anónimo disse...

Depois de ter lido este excelente trabalho na 'Tempo Livre' resolvi vir à procura de mais elementos sobre o 'Plátano de Hipócrates'. Mera curiosidade cultural! Hoje sei um pouco mais sobre uma matéria que me era, praticamente, desconhecida.
Fico grato ao autor do artigo e, confesso, tornei-me (ainda!) mais amigo das árvores... todas as árvores!