17/03/2008

Uma língua gigante de algodão




No Jardim Botânico de Lisboa uma Chorisia ou Paineira tem cerca de 130 anos. As suas grandes flores rosa iluminam os dias de Outono.

Em 1877, chega a Lisboa uma nova árvore. É uma Chorisia Speciosa St. Hil., vulgarmente conhecida por Paineira, porque as suas sementes estão envolvidas em paina, uma espécie de algodão. Oferecida por Júlio Henriques, à época director do Jardim Botânico de Coimbra, este espécime da família das Bombacaceae só será plantado dois anos mais tarde no arboretum do Jardim de Botânico de Lisboa, sob supervisão de Jules Daveau (1852-1929).
Dez anos depois, informa o eminente jardineiro chefe, em artigo publicado no Jornal de Horticultura Prática de 1889 — consultável no site da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto — a jovem árvore, natural do Brasil, já atingira os 12 metros de altura e florescera uma vez. E pelo que nos foi dado ver, ainda hoje continua a florir em pleno Outono, criando as suas grandes flores rosa, ao caírem no chão, um exótico tapete, localizado nas imediações da Estufa de Borboletas, Lagartagis.
A forma bojuda do tronco, repleto de espinhos — que para algumas tribos do rio Pilcomayo, na Argentina, evoca o corpo de uma índia que se teria metamorfoseado em árvore por desgosto amoroso — poderá ajudar à sua localização no Jardim. Convém, no entanto, não confundi-la com outra Chorisia, uma Crispiflora H.B et K. de grande porte, cujas flores de pétalas frisadas são de um rosa pálido, e que também se encontra na mesma área. De qualquer forma, o facto de estarem classificadas ajudará à sua localização.
Face à existência de outro exemplar impõe-se a pergunta: será que Jules Daveau, hábil na descoberta dos sítios mais adequados à plantação de uma espécie, teria também acompanhado a plantação da Crispiflora? É difícil dizê-lo, contudo, parece pouco provável. Em conversa com Ireneia Melo, investigadora no Jardim Botânico de Lisboa, a Chorisia Crispiflora teria sido plantada por um jardineiro, “um pouco à socapa”, depois de um director a ter mandado deitar fora por não crescer na estufa. Esta era a versão que se contava desde o seu tempo de aluna, no final da década de 60. Ainda segundo Ireneia Melo, especialista em fungos, a Chorisia era “a árvore dos chumbos”, por ser frequente os alunos nos exames confundirem os seus estames modificados com pétalas.
Explica Jules Daveau, no mesmo artigo do Jornal de Horticultura Prática que o nome Chorisia, tendo origem na palavra grega chorisein – separar, faria referência à disposição dos orgãos genitais masculinos da flor: “que se compõe (...) de duas séries de estames, uns estereis occupando a base da columna antherifera a qual tem na sua extremidade os ferteis”. Existe, contudo, outra explicação para a origem do nome Chorisia. Teria sido ele atribuído pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), autor de algumas das primeiras descrições da árvore, em homenagem a Louis Choris, um desenhador ucraniano que às expensas do Império Russo deu a volta ao Mundo de 1815 a 1818, retratando indígenas, flora, paisagens e objectos da História Natural.
A partir do artigo de Jules Daveau, a quem se deve a conclusão do catálogo de sementes Index Seminum do Jardim, o desenho do arboretum, e numerosos estudos sobre a flora portuguesa, fica-se a saber que do Brasil vieram as sementes da Chorisia Speciosa. Mas desconhece-se exactamente a sua proveniência. Teriam vindo do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, fundado em 1808, ou de Minas Gerais, onde os perseguidos índios Botocudos usavam rodelas feitas com madeira desta árvore para alargarem as perfurações do lábio inferior e dos lóbulos das orelhas? Ou teriam vindo da Floresta da Paineira, mandada plantar através do Decreto Imperial 577, ordenado por D. Pedro I do Brasil? Quem as teria transportado e em que condições?
Não é possível de momento dizê-lo. Certo é, ter havido um aumento de trocas de sementes entre jardins botânicos nacionais e internacionais justamente no período em que Jules Daveau é jardineiro chefe no Jardim Botânico da Rua da Escola Politécnica, o que reforçaria, além da sua visível competência e zelo, a contínua renovação do seu contrato de trabalho de 1876 até 1892.
De todas as lendas sul americanas sobre a Paineira Rosa a mais inesperada é que conta a história de “O Pai de Todos os Peixes”. Vivia ele dentro de uma Chorisia, guardando todas as noites os peixes do rio, a fim de que nunca faltasse alimento. Até que um dia, foi morto por um índio. De seguida, furioso, batendo sem parar com a sua majestosa cauda acabou por partir o tronco de todas as Chorisias do bosque fazendo transbordar o rio. Nunca mais houve comida em abundância, nunca mais houve paz. A não ser quando o Pai de Todos os Peixes ergue para o Céu a sua língua gigante de sete cores.

Susana Neves



Artigo publicado na crónica A Casa na Árvore, Revista Tempo Livre nº 188, Dezembro 2007, INATEL.

9 comentários:

Anónimo disse...

Excelente artigo, da SN, que dá gosto de ler e saborear para quem ainda é capaz de fruir o espaço mágico do Jardim Botânico em que a ciência se une à poética do espaço, e ambos reforçam os conteúdos da história e os potenciais do futuro como é timbre nas boas práticas científicas.

Porque não haja dúvidas o melhor futuro de Portugal está guardado naquele Jardim que conserva e celebra a maior biodiversidade.
Esperemos que a ciência e a arte botânica continuem a ser promovidas e sobretudo aplicadas cada vez mais como compete a uma nação que está em contínuo processo de civilização.
Para isso há que preservar este jardim e fomentar a criação de outros jardins botânicos em todas as cidades e isso devia ser uma prioridade nacional, um daqueles desígnios nacionais a que vale a pena aderir plenamente porque são os que nos asseguram futuro com alta qualidade para nós e os vindouros.

Leopoldo Brum da Silveira

Arborizador, Lutador pela Liberdade do peão, Praticante de marcha e de Tiro ao Arco, Amante de Lisboa.

Filipe Melo Sousa disse...

por estas paragens vejo mais é
língua de trapo

Anónimo disse...

deves ver é muito trapo ao espelho nas tuas paragens

Anónimo disse...

FMS: eu vejo má língua, ou total falta de língua.

Miguel Drummond de Castro disse...

É um bom artigo da Susana Neves que creio ser das únicas pessoas a fazer "jornalismo botânico", tal como existe noutros países que não se desligaram do seu patrimóno arbóreo.

Miguel Drummond de Castro disse...

ops, peço desculpa era património que eu queria escrever.

Filipe Melo Sousa disse...

está perdoado

Miguel Drummond de Castro disse...

Sua Santidade,

sem o seu perdão que seria de mim?

Filipe Melo Sousa disse...

Pouco me importa. Foi você que o pediu, cabe-lhe aferir a utilidade.

Note-se que só lho conferi porque é algo que não me custa nada.