14/10/2020

"Casa-Museu do Escultor João da Silva: perdão, como disse?" [Jornal Público]

O abandono deliberado deste imóvel modernista, de estilo Bauhaus, bem no centro de Lisboa, começa a dar frutos e a pré-anunciar uma cada vez mais provável ruína, quiçá, potenciadora de alguma lucrativa construção nova, se tudo continuar como está.

11 de Outubro de 2020, 5:40



Houvesse “quizz” televisivo sobre património de pé na cidade de Lisboa e seria manifestamente diminuta a probabilidade de algum dos concorrentes se lembrar de responder “Casa-Museu do Escultor João da Silva” à pergunta capciosa “existe algum património digno de nota na rua Tenente Raul Cascais?”. Não só porque a rua em causa tem apenas meia dúzia de prédios de um lado e de outro, mas também porque quem por lá passe, e não seja morador na dita, apenas o fará por causa das encenações de Luís Miguel Cintra na Cornucópia, e não para lhe admirar o edificado, que desconhece.

Mais a sério, quem se der ao trabalho de “googlar”, por certo encontrará centenas de entradas alusivas ao mestre escultor João da Silva (1880-1960), sobre a sua vida e obra internacional e multipremiada, com referências à sua invulgar (talvez única em Portugal) casa-atelier-galeria-museu, sita nos n.ºs 11 e 11-A daquela rua, à Politécnica, bem no centro de Lisboa.

Na realidade, parece que quiseram que a casa-museu ficasse num conveniente limbo, os que dela têm e tiveram responsabilidade, directa ou indirectamente: por um lado, nos últimos 60 anos, a Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA), proprietária desde 1960 deste grande prédio urbano, pelo testamento de Maria do Pilar Sérgio da Silva (1880-1960), casada com o escultor, em regime de separação de bens; por outro lado, desde inícios dos anos 90 e até 2004, um tal de “zelador” da casa-museu. Agora, o abandono deliberado do imóvel começa a dar frutos e a pré-anunciar uma cada vez mais provável ruína, quiçá, potenciadora de alguma lucrativa construção nova, se tudo continuar como está.

Outro aspecto relevante é o do seu valioso e enormíssimo recheio, também propriedade da SNBA desde 1960, por oferta de João da Silva, o qual era composto, à data do falecimento da filha do mestre-escultor, em 2003, por milhares de “peças valiosíssimas – além de medalhas e moedas, jóias, porcelanas, pinturas, desenhos, gravuras e esculturas – e, ainda, milhares de livros e manuscritos de reconhecido interesse bibliográfico e histórico. Tudo isto sem alarmes contra o roubo e contra o fogo.” (António Valdemar, in PÚBLICO, 29.7.2012). Deste enorme espólio de objectos, na maioria criados pelo escultor, mas também por artistas amigos, já só parece rezar a lenda. Feitas as contas da acção judicial, que a SNBA moveu pela recusa em a deixarem aceder ao espólio da casa-museu e que levou 14 anos a desembocar num acordo entre as partes, em 2018, o que se sabe é muito pouco.

No processo do tribunal foi garantido pelo “conservador” da casa-museu ser o seu recheio de cerca de 50 mil objectos até 2004, até à posse pela SNBA, números que nunca foram contestados por esta última, que aliás só quis para si própria cerca de 100 objectos. Assim, é natural perguntarmos: onde estão os cerca de 49.900 que sobram?

É estranho. Como é igualmente estranho, em 2004, os técnicos do então Instituto Português dos Museus/Ministério da Cultura terem concluído não valer a pena classificar o espólio, por não considerarem ter o mesmo qualquer “valor relevante”. Afinal, terão visto o quê?

Aliás, pela informação dada ao público na recente exposição organizada pela SNBA em Agosto deste ano, conclui-se serem hoje mais as recriações a 3-D do que as peças físicas de João da Silva existentes na SNBA. Talvez achemos as que faltam nos antiquários, cá ou no estrangeiro, nas feiras de velharias ou nos leilões da Net, como já aconteceu recentemente, por exemplo, a peças do espólio da casa de Igrejas Caeiro, na Serra de Carnaxide, e às plantas originais de Cassiano Branco para o Cine-Teatro Éden.

Tal como é estranho o processo que envolveu, e envolve, o procedimento de classificação da casa-atelier-museu-galeria, concebida cerca de 1930 por dois arquitectos franceses e também pelo próprio escultor: o IPPAR demorou cinco anos a responder a um pedido de classificação deste relevante imóvel, tendo feito a sua classificação como imóvel de valor concelhio (2001), mas dois anos depois (2003) passou o assunto para a esfera da CML, por imperativo legal de mudança de competências (2002), o que não deixa de ser caricato.

Só passados mais quatro anos (!), o então vereador da Cultura da CML agiria em conformidade e determinaria a abertura de processo de Valor Concelhio (agora diz-se de Interesse Municipal) deste imóvel diferente, talvez único, residência, atelier, tendo entre ambos uma galeria de exposições com acesso directo ao pátio interior, a partir do qual se desenvolve em “U” toda este fascinante edificado. Note-se que já o escultor João da Silva abria ao público esta galeria, pelo menos uma vez por semana, e que a sua filha continuou essa pioneira tradição de abertura à comunidade.

Na CML, estranhamente mais uma vez, desde 2006 o processo de classificação do imóvel mantém-se na mesma até agora, ou seja, aguarda-se a classificação do município há 14 anos; é tristíssimo, mas tal não é caso único, infelizmente.

Por isso, seria importante que a CML, em conjunto com a SNBA, começasse de imediato a tratar do anúncio, a fazer em 1 de Dezembro deste ano de 2020, quando passarem 140 anos sobre o nascimento do mestre escultor João da Silva (ele que em 1906 renunciou a altos voos profissionais em França por lhe ser então exigido deixar de ser cidadão português), de algumas medidas concretas com vista à urgente classificação, reabilitação e reabertura ao público da moradia da Rua Tenente Raul Cascais, obviamente com o espólio ainda possível, o que se tenha salvo na imensa cortina de fumo que se abateu sobre o legado de João da Silva.

“Seria”, sim, estamos no condicional do verbo ser, e a CML e a SNBA decidirão por bem se no seu Presente se no Pretérito.

Fundador do Fórum Cidadania Lx

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