In Diário de Notícias (25/6/2010)
por FERNANDA CÂNCIO
«Na Baixa de Lisboa, a Rua da Conceição e as suas lojas de retrós encenam há mais de cem anos um desfile quieto de estilo. O pronto-a-vestir ainda não derrotou estes pequenos templos da moda - assim à mão
O sortilégio começa cá fora, nas tabuletas arte nova e art déco e nos nomes arrevesados - Arqui-chique, Bijou - que prometem outro século, rendas e chapéus, mãos enluvadas e tempo, um tempo longo, de gente que deixava carruagens à espera ou vinha de "americano", para ver, escolher, hesitar, voltar outra vez. Começa nas montras misturadas, botões e cintos e lantejoulas e elásticos, bolsas e tules, lãs e fios, algumas ainda com a traça desenhada em 1900 e qualquer coisa, e continua lá dentro, nas fileiras de caixas de botões, botões de massa, de madrepérola, de metal, de pedras, de madeira, de osso, de vidro (caixas de cartão bege compradas às centenas a uma fábrica que entretanto fechou, onde, no topo, as amostras dos vários tamanhos e cores e formatos de botões estão cosidas ou agrafadas, uma a uma, por funcionários e proprietários, num labor de paciência que transforma as casas em galerias garridas, cintilantes, irresistíveis). E continua lá dentro - quer se entre só para ver, para descobrir ou para comprar.
Por exemplo o número 87/89 da rua da Conceição - ou dos Retroseiros, como também é conhecida, graças à acumulação de casas do ramo (hoje são dez, mas já foram mais) - no balcão de madeira escura, o trabalho de minúcia aproveita um tempo morto: organza branca é colocada, com cuidado infinitesimal, sob a pequena maquineta, e encaixada entre duas pequenas peças redondas. Um clic e sai botão. São 40, para um vestido de noiva - diz o bilhete ao lado, escrito à mão e preso ao tecido com um alfinete. Mariana Nóvoas, 55 anos, está há 39 ao balcão da Mário Ramos Lda. Foi o seu primeiro emprego e tudo indica será o único. "Gosto, é bom. Só é complicado quando não temos clientes, as horas passam e torna-se muito difícil estar aqui. E as pessoas às vezes não sabem os nomes das coisas. Eu também me confundia: isto é um mundo."
Um mundo, sem dúvida. Um universo a dar para o infinito. Basta olhar em volta: prateleiras e mais prateleiras, gavetas e mais gavetas, e armazéns do chão ao tecto (altíssimo) disto nas traseiras, onde os clientes mais afoitos têm por vezes a honra e delícia de poder entrar, em busca de um botão retro há 50 anos perdido nas catacumbas, entre caixas e mais caixas de cartão com dizeres misteriosos - "Extrafort" [fita para costura] ou "Perlé" [fio de algodão para tricotar ou bordar], por exemplo. "As pessoas vêm aqui e pedem 'trasfor' e 'pirolés'". Na Adriano Coelho (números 121-123), rebenta uma gargalhada nos donos e empregados. "E quando me pedem 'felcro'? Eu pergunto: 'Mas quer feltro ou velcro?' Ou 'galamares' - aí digo 'Isso é ali no restaurante', eheheheh - as pessoas querem dizer alamares [um tipo de fecho, geralmente usado em casacos; no dicionário é "requife ou cordão metálico que guarnece, pela frente, uma peça de vestuário, de um lado ao outro da abotoadura"]. Mas a melhor de todas foi uma senhora que queria comprar '10 centímetros de cerzideira [cerzir é recuperar tecidos danificados - traçados ou esburacados de outra forma qualquer - com os próprios fios do tecido, reconstituindo-o numa espécie de filigrana de precisão. Uma actividade em vias de total extinção e muitíssimo cara e disputada pela sua dificuldade: na Adriano Coelho ainda se aceitam peças de vestuário para cerzir, mas só vale a pena, assevera um dos proprietários, se for "algo muito bom, porque pode chegar aos 200 euros o arranjo"]". Susana Pais, 31 anos, é a caçula da rua. Num negócio onde a maioria das caras têm mais de 50 anos e décadas de atendimento (nem sempre prazenteiro), é, na sua energia e jovialidade, uma promessa. "Estou aqui há seis anos. Sou filha de um dos donos e resolvi largar o que estava a fazer - na área do turismo - para vir ajudar a família. O filho do outro proprietário também trabalha aqui. E conheço os funcionários desde que nasci." Uma família, precisamente: é o que se sente quando se entra na Adriano Coelho, cujos actuais proprietários, antigos empregados - José Guilherme Pais, 60 anos, e Orlando Mateus, 71 - compraram o negócio aos herdeiros do fundador que lhe deu o nome, em 1912. No grande armazém de chão de laje (igual ao da Sé de Lisboa) e tectos abobadados que fica nas traseiras da loja cujos móveis de mogno foram algures nas últimas décadas - aposta-se nos anos sessenta - pintados cor de baunilha ("Uma pena, diz Susana, "Agora é muito difícil restaurar") e as portas e montra originais substituídas, nos anos 80, por janelões de inox escuro ("Antigamente não se dava valor ao antigo", arrepende-se Orlando Mateus), o escritório ao fundo ostenta ainda os retratos dos primeiros sócios, dois senhores de ar grave e composto. Nas abóbadas de pedra ecoa uma lenda trágica: diz um dos donos que se terá ali enforcado o avô de Vasco Santana. Muito mais histórias, tragédias, comédias ou a mistura das duas que faz a vida normalmente correram decerto por aqui, nesta loja e nas outras que fazem da rua uma espécie de centro comercial do retrós - isso que dá nome às retrosarias e é no dicionário "fio de seda torcido geralmente usado na costura". Um fio sedoso, colorido, caprichoso que se enrola e desenrola, como um bruxedo ou um sortilégio, e nos traz sempre de volta a esta rua e a estas lojas - as lojas onde, como conta Hugo Barreiros, co-proprietário, com o pai, José Reis Barreiros (aos 84 anos, é o ancião da rua, com 70 de balcão) da Nardo e da Mário Ramos, "os estrangeiros entram e ficam de boca aberta, a olhar". Os estrangeiros e os estranhos e mesmo os habituais, que ainda encontram, após anos e anos de frequência, motivos para maravilhamento. Como Ana Reis, proprietária actual da antiga Luís Fernandes, hoje Casa Brilhante, número 79/81, um dos maiores e mais cuidados estabelecimentos da rua e, segundo a dona, o mais antigo (datará a abertura de 1909). Consultora, acabou por "pegar" na loja que o pai e um sócio, ambos antigos empregados do "tal Luís Fernandes", dirigiam há décadas. "Nunca pensei ter uma loja, ou que iria ser dona de uma retrosaria. Aconteceu mais ou menos por acaso. Era suposto o meu pai ficar mais tempo e acabou por não ficar... E fiquei eu." Ao sábado, dia em que, ao arrepio das outras retrosarias, Ana decidiu manter a loja aberta à tarde (também fez um ajuste nos horários dos dias "normais", abrindo mais tarde, às 10, e fechando às 19.15 - "A minha experiência diz-me que faz sentido ir à procura dos horários que dão jeito aos clientes e tem corrido bem, já temos os clientes dos sábados"), costuma estar no atendimento. E quanto mais "mexe" mais descobre o prazer de mexer. "Sou adepta da reciclagem e cada vez tenho mais tentação porque cada vez entro mais nisto, descubro coisas... Este será sempre mais um negócio de afectos e prazeres que de lucros, sem dúvida. Qualquer pessoa que entre para este negócio tem de pensar com o coração, porque se pensa com a cabeça não se mete. Mas acho que é um negócio com futuro - é um negócio da reciclagem e do embelezamento." Recentemente reabilitada, a Brilhante também já não tem a montra e portas originais. E se o arranjo e o cuidado postos na decoração disfarçam um pouco o facto de a frontaria ser de banal alumínio castanho, o contraste com a Bijou e a sua fachada Arte Nova é descoroçoante. Verdadeiramente a jóia da rua, a Bijou é um cochicho, um rectângulo de uns dois metros e meio por seis (e outro tanto, ou talvez mais, de armazém), de móveis e montra a pedir restauro, o tecto trabalhado desfeado por lâmpadas de halogéneo, o chão de madeira substituído por laje de pedra escura, a máquina registadora antiga, belíssima, sobre o balcão do fundo, discreta - mas mesmo assim, como diz Vítor Monteiro, um dos empregados, há 42/43 anos (não sabe precisar) àquele balcão onde começou aos 16/17, "Mais fotografada que a Claudia Schiffer". Pendurado à porta esteve antes um cisne de ferro, até que o seu peso (30 quilos) e o risco de cair levaram, segundo o dono da loja, José Vilar, a Câmara a solicitar a sua retirada. "Está lá para cima, para o armazém" (a maioria das retrosarias tem um armazém maior num andar superior do mesmo prédio), afiança o jurista de 55 anos, que se divide entre o tribunal e o negócio que herdou da família, onde muitas vezes está, tal como a irmã, ao balcão. "Vim para aqui com 12 anos, sobretudo para fazer companhia, recados. Estava cá ainda o meu avô, que tomou a loja em 1922 ao então patrão. Ele saiu em 1969 e ficou a minha tia a tomar conta disto, porque o meu pai era engenheiro e não tinha queda. Agora não estou cá de forma permanente, mas ainda cá venho para atender um bocado." À rendibilidade do negócio encolhe os ombros, mesmo se ali mais atrás, no número 83, o negócio da Arqui-Chique também é sua propriedade, pelo menos formal. "Fiz isso mais para ajudar, pediram-me", certifica. "Mas todos os negócios com mais de 100 anos não são rentáveis." Valem as rendas baixas, talvez, e o facto de, como comenta Ana Reis, haver muita gente para quem "isto é um entretém". Há quem, no entanto, se não entretenha. Se o empregado da Bijou garante que acha o trabalho de toda a vida "uma seca", "com clientes muito chatas, que não sabem o que querem, e muitas vezes estão aqui imenso tempo e não levam nada" (e ele a ir e a voltar com caixas, caixinhas e caixetas e "Não é bem isto", "Não, era mais outra cor...", "Desculpe, vou procurar nas outras lojas, talvez volte"), na Arqui-chique um ex-empregado, Bernardino de Jesus, 76 anos, que vem conversar para passar o tempo, faz um rol sardónico das suas aventuras nas retrosarias. "Comecei no David & David [loja situada no Chiado, junto à Brasileira, classificada pela sua beleza, e que foi trespassada nos anos 90, sendo neste momento um pronto-a-vestir], aos 12 anos, como marçano. Ia buscar coisas ao armazém, e assim. Depois fui para a Bijou, onde varria e tudo. E vim para aqui, para a Arqui-chique, com 15 anos. Aprendi a vender - a enganar o cliente." Faz uma pausa para sorrir. "As clientes? Exigentes e mal educadas. Entram e não dizem boa tarde." E antes? "Antes a maioria eram modistas. Compravam e gamavam." Ao balcão, as ex-colegas Flora Tavares, 68 anos, e Maria Francisco, 43, riem. Flora Tavares começou por trabalhar na mesma rua, mas na Casa Grilo, que vendia espartilhos, barbas, cintas, e tinha um desenho de montra magnífico do qual nada resta - o prédio foi entaipado há muitos anos. "Quis ficar com a loja mas a Câmara queria o prédio por causa das galerias pombalinas, e afinal a loja fechou e aquilo está anos naquela figura. Uma pena." Maria Francisco, 43 anos, recebeu o nome em honra do fundador da casa - Francisco Coucellos, diz a placa art déco dentro da loja - herdou a casa da madrinha, filha do Coucellos, aos 25. "Vinha para cá com ela desde pequena, tenho gosto nisto." Paquita (é assim que lhe chamam) acabou por vender o negócio a José Vilar (da Bijou) mas continua gerente. "Eu por mim não vendia, mas não podia aguentar isto sozinha."
O melhor tempo das retrosarias, afiança Carlos Calheiros Cruz, da J. R. Da Silva, passou há pelo menos 30 anos. "No anos 60/70 havia muitas modistas. Éramos dez ao balcão e tínhamos fila de três clientes para cada um. Agora são quatro: ele, que é proprietário, o sócio, Mário Carreira (como ele, era empregado dos anteriores donos), de 63 anos, a mulher Fábia Carreira, de 60, e o empregado Carlos Clara, de 53. "Às vezes estou farto, mas é melhor que estar em casa. E quando nós nos fartarmos de vez, é o fim: os nossos filhos não querem nada com isto." Pena, dirá Leontina Martins, cliente "há muito", mesmo antes de ser funcionária do ministério das Finanças, ali no Terreiro do Paço. "Antes mandava fazer roupa, agora compro e altero. Adoro alterar: mudo os botões, por exemplo, e fica logo uma peça diferente." Mas, lá está: "Não conheço muita gente que faça isto. Tenho uma amiga que também frequenta as retrosarias, mas é raro." Do tempo "bom" fala também, com nostalgia, Alfredo Ricardo, o proprietário da Alexandre Bento, Lda., no número 67/69. "Vinham estafetas de todo o Alentejo, uma vez por semana, com as encomendas das modistas. O último que conheci morreu há uns 15 anos..."
Ainda assim: se o pai, José Reis Barreiros, sumariza a prosperi-dade - "O negócio é tão bom que com 84 anos estou atrás de um balcão" -, Hugo Barreiras, da Nardo e da Mário Ramos, uma de cada lado da rua, veio de oficial do exército e depois chefe de compras de uma fábrica de confecções para retroseiro e parece capaz de acompanhar as evoluções do mercado - e, sobretudo, compreendê-las. "É verdade que de há uns 12 anos para cá isto não está regular. Há muito menos pessoas a trabalhar nesta área e menos pessoas a coser. E uma mudança de mentalidade que é perfeitamente normal nos consumidores: entram aqui como num supermercado, e aqui têm mesmo de ver, escolher, pedir, esperar. Faz parte..." Tão parte como o gosto com que ele e Ana Reis, da Brilhante, falam dos produtos que vendem, dos serviços que comercializam, dos clientes de décadas que reconhecem ao longe na rua e cumprimentam como velhos amigos a quem na maior parte dos casos nunca souberam o nome. "Forramos sapatos, malas, fazemos malas de raiz, pochettes, cintos, forramos fivelas, plissados de variados feitios, flores da forma tradicional antiga com ferros quentes, de qualquer tecido, pregamos fecho-éclairs, fazemos pequenos arranjos, transformações de vestuários, até anéis e brincos com botões..." A lista parece infinita, como o desejo - assim o desejo de ter e ser diferente, único, o prazer de fazer e escolher e procurar permaneça. Assim haja quem se encante, sempre, com este nome, que, como resume José Reis Barreiros, "diz tudo": retrosaria. »