Com a demissão do arquitecto Manuel Salgado do cargo de vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa, fechou-se definitivamente (tudo leva a crer) um ciclo de 12 anos à frente dos destinos do planeamento urbano da cidade e daquilo que ele entende ser reabilitação do edificado (à guarda da CML ou não) e, consequentemente, no que isso se traduziu em termos reais e visíveis para a cidade, por via dos incentivos urbanísticos que promoveu e da aprovação dos respectivos projectos de arquitectura e do seu licenciamento que despachou.
Muito resumidamente, até porque o que importará agora é virar-se a página, o seu legado a nível urbanístico abrange coisas boas, sem dúvida do ponto de vista teórico (por ex., urgia avançar com a revisão do Plano Director Municipal e o ex-vereador fê-la; havia que “cerzir” com planeamento urbano algumas áreas da cidade ainda por regulamentar e isso aconteceu com a aprovação de uma série de termos de referência de planos de pormenor e a entrada em vigor de outros já aprovados anteriormente mas nunca postos a vigorar, e com a alteração de vários planos de urbanização em vigor), mas abrange coisas más, factuais, algumas delas muito más, como seja a autorização (da sua estrita responsabilidade, porque não herdados de outras vereações por via de “direitos adquiridos” em resultado de pedidos de informação prévia aprovados por terceiros) de mais de 300 demolições de edifícios de valor para a cidade, edifícios os mais variados, grande parte deles com mais de 100 anos de existência (e aqui foram especialmente massacradas as edificações da chamada “arquitectura de transição”, século XIX-XX), alguns deles bem emblemáticos na cidade (ex. a celebérrima moradia da Rua da Lapa), outros até, imagine-se, construídos em épocas que se julgavam imunes ao camartelo: a arquitectura modernista (veja-se a “reabilitação” em curso na também celebérrima moradia desenhada por Cristino da Silva para o eng. Bélard da Fonseca, junto ao Instituto Superior Técnico).
Por sua vez, “ganhámos” na cidade antiga um sem-número de empreendimentos de grande escala, alguns numa escala nunca dantes vista, uns em construção avançada ou já concluída, violando e obstruindo vistas de e para miradouros (ex. o novel Hospital da CUF vs. miradouro das Necessidades), outros que inclusivamente que serão obstáculo sério à candidatura “Lisboa Histórica, Cidade Global” à Unesco (ex. a construção na frente-rio da Lisboa histórica, mais projectos em miradouros, etc.), outros ainda por construir e que irão mudar radicalmente a imagem que temos da cidade actual, gostemos ou não dela (ex. o plano de pormenor da Matinha, que virou loteamento, os “n” empreendimentos no Poço do Bispo/Praça David Leandro, Beato, a ampliação do CCB, o loteamento da extinta SIDUL, a “muralha de cimento” em volta do anunciado oásis da Praça de Espanha, o empreendimento na antiga Feira Popular, a tal torre que dizem ser arranha-céus na Portugália, etc., etc.).
E, infelizmente, ter-se-á plasmado na Câmara Municipal de Lisboa durante a última década a ideia luminosa de que o importante para povoar a cidade seria apostar no Turismo e na facilitação de projectos de índole turística, em detrimento de reabilitar para habitar, tomar posse administrativa e fazer obras coercivas, isto porque assim os investidores de cariz turístico podem queimar etapas em termos de procedimentos burocráticos, e são, diz-se, potencialmente geradores de emprego local e de riqueza, imagina-se que célere e sem controlo.
Foi assim que a CML entendeu por bem promover a réplica, a “contaminação positiva” como o ex-vereador referia, do modelo desenvolvido no Chiado em finais de 90, início do século XXI, logo no início da sua vereação para a Baixa, depois nos bairros históricos, e logo a seguir, Avenida da Liberdade e Avenidas Novas, hoje um pouco por toda a cidade. Estará arrependido, acredito.
Tudo isso se traduziu numa reabilitação urbana feita essencialmente de construção nova com manutenção de fachadas.
Uma reabilitação urbana aprovada em 90% dos casos por despacho do vereador, graças a uma delegação de competências que nunca ninguém discutiu, porque o que importava, seguramente, era tornar mais rápidas as reuniões de executivo camarário, muito menos importunarem-se com algo de somenos como é o escrutínio do público.
Uma reabilitação urbana que não existia, afiançaram-nos, porque o Plano Director Municipal em vigor desde 1994 era muito protector e conservacionista (risos) e havia um terrível polvo de procedimentos burocráticos na CML, ambos fomentavam uma Lisboa cada vez mais abandonada, de há 30 anos a esta parte, e que por isso era preciso abrir uma “via verde” para o licenciamento.
Para isso se descontou ou ignorou quase tudo quanto os serviços ligados ao núcleo do património opinavam quando estavam em causa projectos que, de certa maneira, interferiam com os bens da Carta do Património e não só, em que um “à consideração superior” era lido como “faça V.Exa. conforme entender” e assim despachado em conformidade.
Para isso se contou e abusou do imobilismo e, muitas vezes, do beneplácito da Direcção-Geral do Património Cultural (antes Igespar e IPPAR), uma entidade ciclicamente (propositadamente?) sem meios nem competências nem autoridade para fazer frente não só aos desvarios sobre o património à sua guarda directa, como, por maioria de razão, aos que se fazem ao património existente nas zonas de protecção de imóveis por si classificados. Para obviar a isso, assinou-se um protocolo de entendimento entre as partes, e assim todos os projectos potencialmente polémicos em termos patrimoniais passaram a ser analisados e aprovados não em sede dos serviços da Ajuda, mas em gabinete da CML em Entrecampos, entre três pessoas, duas nomeadas (?) pela DGPC e uma da CML.
Uma reabilitação urbana feita a poucas mãos e talvez por isso uma reabilitação que nunca tenha tido tantos casos sob denúncia ao Ministério Público, e mesmo em tribunal como os que tem hoje (ex. museu judaico, Praça das Flores, Entrecampos, Radio Palace, Rua do Bemformoso, a torre das Picoas… o mono do Rato) e muito possivelmente virá a ter nos tempos mais próximos…
Importa, por isso, saber, quanto antes, o que pensa e, sobretudo, o que quer e irá fazer o novo vereador, o eng.º Ricardo Veludo, em relação ao modus operandi da CML em matéria de reabilitação urbana e de licenciamento urbanístico.
Dito por outras palavras:
Vai o senhor vereador Ricardo Veludo rever cirurgicamente o Plano Director Municipal e os Planos de Pormenor e os Planos de Urbanização em vigor, alterando as “entrelinhas” dos mesmos, por forma a que não mais se permitam as aberrações que todos os dias vemos a crescer em Lisboa, em Alfama, na Mouraria, Sé, Madragoa, Baixa, Bairro Alto, Chiado, Avenida da Liberdade e zona adjacente, Bica, Madragoa, Boavista, Alcântara, fruto de outras tantas demolições, permutas de terrenos no mínimo discutíveis, etc., etc.?
E as ampliações desmedidas, o esventramento dos logradouros e a descaracterização sistemática a que temos assistido nos edifícios antigos e não tão antigos em Campo de Ourique, Estrela, Lapa, Príncipe Real, Salitre, Avenidas Novas, Arroios, Graça e por aí fora?
Vai o senhor vereador abdicar da delegação de competências, que certamente lhe atribuirão, e voltar a levar a reunião de CML os pedidos de informação prévia, os projectos de arquitectura, os licenciamentos e os projectos de especialidades que impliquem obras de alterações significativas, demolições ou ampliações desmedidas, sobretudo os que digam respeito a edifícios constantes da Carta do Património anexa ao PDM?
Qual o entendimento que o novo vereador tem sobre Reabilitação Urbana? Reabilitação do edificado que seja compatível de recuperação, mudando ou não a sua utilização, mas mantendo sempre o mais possível os interiores, sem roubar a alma do quarteirão e do bairro? Ou construção nova travestida de reabilitação, i.e., em que apenas ficam a fachada principal e o “hall” de entrada?
O que pensa e o que vai fazer o novo vereador acerca da Colina de Sant’Ana? Vai manter o projecto estapafúrdio previsto para o antigo Hospital Miguel Bombarda? São José vai ter toda aquela construção nova? Idem nos os Capuchos? E o protocolo de entendimento celebrado em 2010 entre a CML e o IGESPAR/DRC-LVT com vista à “agilização” de licenciamentos, é para manter ou para rasgar?
Vai dar mais força aos pareceres dos técnicos em detrimento dos das chefias intermédias? A Carta Municipal do Património é para levar a sério ou é para continuar a fazer de conta, ou que se vai actualizar quando o que se quer é amputá-la? E a aposta no Turismo é para continuar? Até quando e quanto? Vai utilizar alguma da verba adquirida pela CML com as taxas turísticas para expropriar edifícios que o mereçam ser, tomar posse administrativa de outros tantos e proceder a obras coercivas?
E a candidatura de “Lisboa Histórica, Cidade Global” à UNESCO, vai o senhor vereador reerguer a estrutura camarária criada pelo seu antecessor e já desmembrada pelo próprio, e assim dar bom seguimento à dita?
E a já célebre Sociedade de Reabilitação Urbana, herdeira da Lx Ocidental e a única que sobreviveu no universo da CML e que passou incólume pela “troika”, qual o papel que vai ter na cidade?
A cidade agradece."