12/08/2008

Da pintura das passadeiras


"Da pintura das passadeiras - 12.08.2008, PUBLICO - José Vítor Malheiros

Os cidadãos reagem à norma pública exactamente com o mesmo respeito que a norma pública manifesta por eles
Numa das ruas que atravesso a pé nos meus trajectos diários apareceu há tempos uma passadeira pintada de fresco. A passadeira era uma zebra daquelas onde não há semáforo e onde não há dúvidas quanto a quem tem prioridade: são mesmo os peões.
Aconteceu que a passadeira foi pintada de fresco e os carros começaram a parar para os peões passarem.
Não era aquele habitual abrandar envergonhado para não dar parte de fraco enquanto os peões correm para se pôr a salvo. Os carros paravam mesmo e os peões passavam. Era prático.
À medida que o tempo passava, a tinta foi enegrecendo, o contraste foi-se tornando menos nítido entre as riscas brancas e pretas da zebra e aconteceu o inevitável. A lógica binária induzida pela passadeira pintada de fresco (pára, anda) foi substituída por uma lógica fuzzy (abranda às vezes; nem abranda; deixa passar um, mas não dois; as mulheres sim, os homens não) que traduzia em termos normativos os graus de cinzento do asfalto manchado.
Há muitas interpretações para o facto. Pode-se pensar que os carros deixaram de obedecer à passadeira em virtude daquilo que os americanos chamam plausible deniability. ("Passadeira? Qual passadeira? Eu vi umas marcas muito sumidas, mas pensava que fossem de uma passadeira antiga que já nem existisse"). Pode-se pensar que alguns dos automobilistas não vejam mesmo as marcas (é por isso que a deniability é plausible). E pode-se pensar que outros não queiram ser alvo da chacota dos seus colegas automobilistas se pararem ("Tás a parar na passadeira, ó betinho? Pensas que tás na Suíça? Não tás a ver cas marcas tão tão sumidas quisto dá plausible deniability? Anda mazé pá frente, ó tótó!..."), numa situação a que se poderia dar o nome de cascading plausible deniability ou plausible deniability chain reaction (ou também incivilidade viral).
Mas a minha teoria é outra. Penso que a razão por que as pessoas param numa passadeira bem pintada mas não numa passadeira suja e sumida não é porque no segundo caso se possam safar facilmente sem sanção, mas sim porque reagem à norma pública exactamente com o mesmo respeito que essa norma pública manifesta por eles. A atitude não será desculpável, mas é compreensível e mesmo defensável.
No fundo, é a mesma razão que faz com que, numa praia cheia de lixo, um veraneante não se importe de atirar a lata vazia de cerveja para o areal e numa outra praia imaculada, onde seja evidente o cuidado posto na sua limpeza, faça cem metros ao sol para ir buscar uma lata de cerveja vazia para servir de cinzeiro. O campo colhe o que semeia e a cidade também. E as passadeiras sumidas e sujas semeiam automobilistas que não respeitam peões.
A mensagem subliminar da passadeira sumida é que, de facto, o seu papel não é muito importante, que a regra que ela pretensamente impõe não é respeitável, que ela não é levada a sério por ninguém e que ninguém se importará muito se ela não for respeitada. Uma sociedade democrática rege-se por regras consensualmente impostas para benefício de todos, mas para isso é fundamental que o princípio de equidade seja respeitado. Eu só respeitarei uma regra se ela for respeitada por todos, só pararei na passadeira se todos pararem, só pagarei impostos se eles forem pagos por todos, etc.
A passadeira sumida declara que quem a pintou não acata a disciplina que exige de mim ou, alternativamente, declara que, na realidade, não exige disciplina de ninguém.
Não sei se o homem é naturalmente bom ou naturalmente mau (tendo a pensar que é naturalmente assim-assim) mas tenho a certeza de uma coisa: se houvesse mais passadeiras bem pintadas, seria melhor do que é."
Jornalista
Fotografia: Passadeira sumida - R. Prof Francisco Gentil - Telheiras

8 comentários:

Filipe Melo Sousa disse...

Eu acho que a paragem do carro é uma grande ineficiência. Travagem e aceleração forçadas, um desperdício de energia, tempo e dinheiro. Se o peão estiver minimamente atento, poderá acelerar o passo e estar atento ao timing da passagem dos carros. Infelizmente a passadeira concede a muitos um poder que não se coíbem de usar. Provavelmente porque haverá poucas outras situações no quotidiano em que poderão ordenar a paragem de alguém. Imagino perfeitamente o que passa na cabeça dessas almas:

"agora mando eu, podes ganhar 20 vezes mais do que eu e ter um BMW, mas estou aqui no meu direito, no meu grandessíssimo direito. Vais esperar aí o tempo que eu quiser, e demoro a passar o tempo que eu achar necessário. Tu e os outros que tiverem de esperar atrás de ti".

M Isabel G disse...

"Eu acho que a paragem do carro é uma grande ineficiência. Travagem e aceleração forçadas, um desperdício de energia, tempo e dinheiro"

Já tenho idade para estar calada, mas se me permite, espero que nunca encontre junto a uma passadeira um condutor poupadinho e apressado!!

Filipe Melo Sousa disse...

Estranho que uma pessoa que se declara tão sensata manifeste esse desejo de liquidar fisicamente quem não concorda com as suas opiniões.

Aparentemente não é só a idade que não a remete ao silêncio. A sensatez também não serve de inibidor.

M Isabel G disse...

"manifeste esse desejo de liquidar fisicamente quem não concorda com as suas opiniões."

Eu sabia......... :)
:)
:)
:)
:)
:)
Calo-me já e prometo não voltar a pecar, perdão, a falar.

Nuno disse...

Caro Filipe:

1.Alguns de nós temos pernas.

2.Qualquer condutor preocupado com o carro e com o consumo sabe que abrandar antecipadamente, estar atento aos sinais que avisam de uma travessia de peões (e que estão colocados a 20 metros)poupam o motor, combustível, travões e paciência.
Se abrandar muito antes eu tenho tempo de passar e percebo que quer deixar-me fazê-lo e poderá ainda continuar a rodar satisfeito sem eu me ressentir da gama do seu veiculo.
Chama-se "condução defensiva" e resolve-lhe logo o seu problema de ineficiência- experimente.

3.Tem que abrandar nas passagens de peões mas não necessariamente parar-vem numa peça de literatura esotérica chamada "Código da Estrada".

4.Na sua crítica falta uma sugestão de resolução alinhada com o seu discurso mas como me estimulou a imaginação porque não construir sob Lisboa um subsistema de tuneis (qualquer autaurca adoraria a ideia) para peões onde estes podem andar a pé e de bicicleta, ler o jornal, estar, etc.
Assim podia cruzar a cidade a 120km\h que nem o Vin Diesel!

Filipe Melo Sousa disse...

Nunca avistei os tais "alguns-que-temos", pelo que me terá de explicar melhor quem são esses seres desprovidos de qualquer concordância verbal. Mas calculo que tenham carta branca para fazer parar o trânsito durante o tempo que entenderem.

Nuno disse...

Caro Felipe Sousa,

O meu pontapé acidental na gramática não legitimiza o seu pontapé deliberado na lógica.

Ao ler os seus comentários
percebe-se que passou por uma experiência traumática envolvendo uma passagem de peões, talvez alguém tenha passado á sua frente a fazer o moonwalk durante 10 minutos mas de qualquer modo peço-lhe que não generalize- a maioria dos peões não vive para sabotar o seu contra-relógio.

Mais uma vez não sugere qualquer solução para o seu grave problema. Deve ser difícil conduzir uma vez que os carros têm menos espaço que os peões, podem-se riscar quando os atingem e estes últimos são ainda os grandes responsáveis por existirem praças onde deviam haver estacionamentos á borla.

Estou solidário com o seu sofrimento.

Anónimo disse...

LOBO VILLA

Além deste triste "blogálogo" a maior tristeza vai,como de costume para o nosso país,com leis a mais por todo o lado e com esta lei-elementar a menos:com efeito, segundo o Código da Estrada,o peão SÓ TEM PRIORIDADE sobre o automóvel:
numa passadeira com semáforo e quando este estiver ACESO !!!(o que é difícil de provar...).
De contrário,a prioridade é sempre do automóvel,ou seja em 99% dos casos...
Perguntem ao ACP.