27/11/2018

"Uma questão de ponto(s) de vista" [Público]

O PDM de Lisboa faz de conta que salvaguarda intransigentemente as vistas de Lisboa e que pune quem as viola, mas é apenas no papel. Na realidade tudo depende da excepcionalidade, materialidade e oportunidade do momento.

27 de Novembro de 2018, 8:53

Fossem do tempo presente os armadores portugueses de antanho que, a acreditar nas lendas e narrativas, ficavam pespegados no alto de Santa Catarina, em Lisboa, a aguardar pela chegada das naus que d’além-mar traziam as preciosidades e as histórias que alimentavam o país de então, ou, quiçá mais provável, ali estivessem hoje os que durante anos a fio esperaram inutilmente por que D. Sebastião chegasse são e salvo de Alcácer-Quibir, ou, talvez mais verosímil ainda, ali permanecessem os que esperavam pelo regresso da família real portuguesa fugida aquando da ocupação dos invasores franceses liderados por Junot, ou, porque não, ainda mais verdadeiro, ali se aglomerassem as tropas daquele, ficando a ver, incapazes de os alcançarem, D. João VI e a sua corte rumarem mar adentro em direcção ao Brasil; fossem todos eles deste tempo e estariam hoje não a ver paquetes, perdão, navios mas torres de betão, pois nem o Tejo mirariam.

A introdução acima peca obviamente por excessiva (também) no que toca ao próprio miradouro de Santa Catarina, dado que com a altitude deste as vistas que dele se gozam só serão afectadas seriamente se alguém deixar que um dia se construa na Boavista e em São Paulo verdadeiros arranha-céus, porque os prédios recentes da EDP, sendo altos para a frente-rio, e intrusivos no que toca à vista desde o rio para colina, não o são para quem observa o rio desde a colina.

Contudo, noutros locais de Lisboa a situação começa a ser dramática dado as ameaças de facto.

Começando pelo princípio, fiquemos com a definição inscrita em sede de Plano Director Municipal (PDM), que todos juram a pés juntos ser a “Constituição da cidade de Lisboa”: «O sistema de vistas é formado pelas panorâmicas e pelos enfiamentos de vistas que, a partir dos espaços públicos, nomeadamente os miradouros, jardins públicos, largos e praças e arruamentos existentes, proporcionam a fruição das paisagens e ambientes urbanos da cidade de Lisboa.» (artigo 17º).

Mais à frente: «O sistema de vistas tem por objetivos salvaguardar e valorizar as relações visuais que, devido à fisiografia da cidade, se estabelecem entre os espaços públicos e os elementos característicos (….) do a) Subsistema da frente ribeirinha (…); b) Subsistema de pontos dominantes, subsistema de ângulos de visão e subsistema de cumeadas principais, (…); c) Subsistema de vales, onde se estabelecem relações visuais com as encostas e as zonas baixas da cidade (…).»

Mais: «As intervenções urbanísticas localizadas nas áreas abrangidas pelos ângulos de visão dos pontos dominantes, identificados na Planta do sistema de vistas, não podem obstruir os ângulos de visão a partir desses pontos. É exigida a realização de estudos de impacte visual que permitam avaliar e estabelecer condicionamentos relativamente a novas construções, ampliações, alterações de coberturas e outras intervenções suscetíveis de prejudicar este sistema, nomeadamente nas situações em que estão em causa infraestruturas da atividade ou exploração portuária, quando não se dispõe de alternativas de localização (…)».

O texto é imaculado, ou talvez não (por exemplo, nunca são quantificados em graus os ângulos de visão dos pontos de vista, nem nunca se refere mais pontos de vista para lá dos miradouros mais conhecidos…), e não parece haver razões para alarme.

Contudo, também aqui o que parece não é. O legislador municipal esqueceu-se de referir duas coisas: discricionariedade e casuística.

Porque não é verdade, ou melhor, é pura mentira que «As intervenções urbanísticas localizadas nas áreas abrangidas pelos ângulos de visão dos pontos dominantes, identificados na Planta do sistema de vistas, não podem obstruir os ângulos de visão a partir desses pontos.». Tal como não é verdade que seja «exigida a realização de estudos de impacte visual (…)»

Não se entende se para a Câmara Municipal de Lisboa (CML) o sistema de vistas se “resume” às vistas dos miradouros oficiais (Santa Catarina, São Pedro de Alcântara, Nossa Senhora do Monte, etc.), ou se o seu sistema também inclui todos os pontos de vista que se tem desde este ou aquele local, para o rio, para o vale X ou colina Y.

Também não se compreende a existência de facto e presente de tantos atentados às vistas de Lisboa, que resultam de empreendimentos de promotores substancialmente poderosos, assinados por ateliers uns mais conceituados do que outros, mas sempre homologados sem o mínimo pestanejar da tutela.

Começando por uma ponta, e deixando de fora algumas vistas tapadas há já alguns anos (ex. as vistas da esquina da R. Antónia Maria Cardoso com a Vítor Cordon tapadas incrivelmente pelos “Terraços de Bragança”, de Siza Vieira; as agências europeias do Sodré, projectadas pelo arq. Manuel Taínha; o novel Câmara Pestana, do arq. Byrne, mono incontornável das vistas das colinas opostas), vale a pena referir alguns casos ainda em fase de arranque, uns, outros já em velocidade cruzeiro, todos passíveis de correcção:

1. O novo hospital da CUF em Alcântara (projecto de Frederico Valsassina), e que está em avançada fase de construção. Como se pode aceitar que o novo hospital, já de si polémico por mil e uma razões, impossibilite neste preciso momento a vista que se tem para o rio e a Ponte 25 de Abril desde o miradouro Olavo Bilac (Largo das Necessidades)? Um miradouro inscrito no PDM? Diz-se agora que o promotor já terá pago uma coima de 100.000 euros por causa dos andares a mais que terá construído em desrespeito pelo projecto pela CML, mas não se vislumbra qualquer intenção demolição desses pisos a mais.

2. O “muro da Senhora do Monte”, que tem pedido de informação prévia com “homologue-se”. Como é que se pode aceitar que os serviços da CML tenham proposto para homologação um projecto (do atelier ARX) em lote non-aedificandi desde, crê-se, 1931, que aniquila em cerca de 30% o ângulo de visão daquele que talvez seja o miradouro de Lisboa com melhor vista de todas, violando grosseiramente não só o sistema de vistas referido no PDM mas o próprio raio de protecção da Capela de São Gens, classificada de Interesse Público?

3. Os trampolins do Monte, perdão, os “Terraços do Monte”, com projecto do mesmo atelier, que sendo na Rua Damasceno Monteiro, referem-se à Senhora Monte e bem, porque também aqui (obsessão?) se irá dar cabo da vista do miradouro da quota imediatamente acima, desta vez acabando quase totalmente com as vistas para o Martim Moniz, se se alinhar a cércea dos futuros “edifícios miradouros”, como são designados pelos autores, com a do malfadado “Via Graça” (que devia já ter sido cortado, evidentemente, como mau exemplo e caso a não replicar). O caso aqui é também estranho no que toca ao próprio terreno, porque, aparentemente, terá sido doado à CML por privado, ao que julga com fins de benfeitoria, passou à EPUL para futuro estacionamento automóvel nunca realizado, e agora aparece na carteira de propriedades de promotor francês bem conhecido em Lisboa.

Por falar em investidores franceses e em pontos de vista em vias de serem estragados, um 2x1: as obras de ampliação em curso no Palácio de Santa Helena e em vias de começarem para o antigo Hospital da Marinha, e ambos com projectos de arquitectura do atelier STC-Arquitectura, ou seja, e respectivamente:

Quem passar a pé pelo Largo do Siqueira deixará de poder ver o rio como via, pois o muro lateral nascente do empreendimento em curso, que, basicamente, desfigurou o palácio e o seu pátio (mais isso é outro assunto…), subiu e agora só um “homem com 3 metros de altura” é que o poderá fazer.

Da mesma maneira, se for avante o que a CML aprovou para o local do antigo cemitério da capela do Paraíso, mesmo ao lado do mono que “Faz Figura” (basicamente, alinhará as cérceas deste com o edifício de transição onde funcionou até há poucos meses uma escola), não só a Rua do Paraíso virará inferno, como quem subir ao miradouro da cúpula de Santa Engrácia encontrará uma série de estanhos prédios novos a taparem a vista para Santa Apolónia, e vice-versa, bem entendido.

E, last but not least, o tal anfiteatro em forma de televisor panorâmico que a Santa Casa encomendou a Souto Moura para as traseiras da Misericórdia. Um “brinquedo” que desfigurará as vistas que de toda a cidade a nascente da Avenida da Liberdade se disfruta actualmente para a colina de São Roque.

Resumindo e concluindo, o PDM de Lisboa faz de conta que salvaguarda intransigentemente as vistas de Lisboa e que pune quem as viola, mas é apenas no papel. Na realidade tudo depende da excepcionalidade, materialidade e oportunidade do momento, e dos vários actores em presença, o que em nada abona à pretensão camarária de classificar “Lisboa Histórica, Cidade Global” como património UNESCO.

No que concerne aos pontos de vistas, bom, “é giro, pá” avistar-se um paquete ao fundo da Rua do Alecrim.

Fundador do Fórum Cidadania Lx

in https://www.publico.pt/2018/11/27/local/opiniao/questao-pontos-vista-1852562

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