10/05/2012

Já se ouve água a correr nos jardins do Palácio de Queluz




Por Lucinda Canelas in Público

Quem escolher esta Primavera para passear pelos jardins e alamedas da casa de campo de D. Pedro e D. Maria não se vai arrepender. Cheira a laranjas e alecrim e as fontes convidam


Os canteiros estão floridos e as fontes a funcionar, depois de limpos metais e pedras e de os mecanismos hidráulicos terem sido restaurados. "Ainda há muito a fazer, mas para já recuperámos o som da água, fundamental neste jardim que parece ter sido feito para namorar", diz Isabel Cordeiro, directora do Palácio Nacional de Queluz. Esta é a segunda Primavera em que a água corre nas fontes da quinta que D. Pedro III, ainda príncipe, começou a transformar em 1746. Antes dos trabalhos de conservação e restauro, estiveram paradas 20 anos.
Quando se percorrem os caminhos e as alamedas do jardim de Queluz, que as esculturas de deuses e nereides tornam absolutamente cenográfico, é mais fácil imaginar as festas que ali eram organizadas no século XVIII e que a historiadora Denise Pereira da Silva tão bem descreve no livro que o palácio publicou em colaboração com a Imprensa Nacional - Casa da Moeda (Os Jardins do Palácio Nacional de Queluz, 2011). Na intimidade do palácio e do seu parque, a corte assistia aos festejos de S. João e de S. Pedro organizados pelo infante, que em 1777 se torna rei ao casar com a sobrinha, D. Maria.
Essas festas começaram a ganhar fama, mesmo entre os representantes diplomáticos de outros reinos. Havia animais exóticos espalhados pelos jardins, música por toda a parte, jogos e até gôndolas no Canal de Azulejos, uma das preciosidades de Queluz. O fogo-de-artifício podia ver-se a grande distância e era costume as infantas e a rainha cantarem.
"D. Pedro ordenava que se fizessem pavilhões efémeros para que os convidados tivessem sempre uma surpresa", explica ao PÚBLICO Ana Duarte Rodrigues, que assina no livro o texto da escultura. Para esta especialista em palácios e quintas dos séculos XVII e XVIII, o jardim de Queluz é o resultado da vontade de D. Pedro e do génio de Jean-Baptiste Robillion, o arquitecto e escultor francês, discípulo do ourives Thomas Germain, que se ocupa da segunda fase de construção do palácio e dos jardins, dando-lhe o seu estilo rococó. Claro que a Robillion se juntam muitos artistas portugueses e estrangeiros, com destaque para o britânico John Cheere. Catorze das suas esculturas, encomendadas em 1755, formam, lembra a directora do palácio, um dos "conjuntos [de Cheere] mais coerentes do mundo".
"Na escultura de Queluz, D. Pedro segue uma linguagem internacional, com a mitologia clássica e o elogio das artes em destaque", diz Rodrigues, explicando que há um eixo que organiza todo o jardim e apontando os caminhos que atravessam praças e que sugerem estrelas. O Lago de Nereide com os seus repuxos, e os pares Meleagro e Atalanta, Vénus e Adónis e Baco e Ariadne mostram até que ponto água e erotismo são essenciais nos jardins do século XVIII: "Os jardins barrocos não vivem sem a sensualidade da escultura nem sem os jogos de água, que nos convidam a parar para olhar."
A investigação para Os Jardins do Palácio Nacional de Queluz, obra que vem actualizar a anterior, dos anos 1980, decorreu a par dos trabalhos de conservação e demorou três anos. O livro, que para Cordeiro "cristaliza a identidade do jardim", contém também um estudo sobre a evolução do coberto vegetal, de Gerald Luckhurst. É o arquitecto paisagista holandês quem explica que as sebes que hoje são de buxo e têm cem quilómetros foram antes de murta e de loureiro e eram usadas pelas criadas para estender a roupa.
O projecto de restauro incluiu também a intervenção em 56 esculturas italianas (1756-1767), a recuperação do leito da ribeira do Jamor, que os atravessa, e a plantação de 800 árvores e 1500 arbustos.
Entre os grupos escultóricos mais impressionantes, garante Rodrigues, está o que mostra Eneias com Anquises, o pai, e o do Rapto de Proserpina: "As fugas e os amores que se metamorfoseiam são temas que interessam à escultura de jardim, que aqui chegava a ser dourada." No Lago das Medalhas, ali bem perto, cheira a alecrim e a laranjas. A sua base em forma de concha faz-nos acreditar que a pedra é tão maleável como o barro. "A Primavera convida a um passeio, mas Queluz deve visitar-se o ano inteiro porque muda muito", diz a historiadora. Aliás, é quando cheira a terra molhada que um jardim é quase perfeito.

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