In Público (19/4/2007)
Paulo Pereira
«Ministério da Cultura opera transformação catastrófica no património
Sempre considerei necessária uma reforma do sector do património cultural da responsabilidade do Estado. Na minha óptica (e não só), haveria que começar pelo património edificado. Verificavam-se sobreposições de competências entre a DGEMN [Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais] e o Ippar [Instituto Português do Património Arquitectónico]. De forma a pôr de pé uma gestão integrada do património, o novo processo de gestão implicaria, em partes iguais, as tarefas relacionadas com a área da salvaguarda (vulgo a emissão de pareceres e autorizações), as intervenções de restauro e qualificação em monumentos (e não apenas "obras") e a gestão dos edifícios, através de uma política concertada de "governo da paisagem" e de "disciplina urbana", ou seja, através de acções que visavam ligar o trabalho autorizativo e o trabalho de intervenção física.
Eventualmente, esta reforma passaria pela extinção da DGEMN (que manteria, porém, a sua "marca" na componente arquivística, passiva, atendendo à história do património em Portugal), pela extinção do Ippar (até este momento a entidade responsável pelo maior investimento público em restauro e a quem cabe o serviço autorizativo do Estado), pelo reforço da autonomia financeira e, naturalmente, pela criação de uma nova entidade institucional. Como é óbvio, qualquer reforma deste tipo, que compreenderia uma regionalização de competências, implicava tempo e dinheiro para que fosse bem feita.
Ora, pelo que nos dizem os economistas encartados - de cassete liberal -, neste momento não há tempo nem dinheiro. Mas o Ministério da Cultura (MC) insistiu em avançar com uma "reforma" que, de maneira trôpega, pretende de uma penada (isto é, sem tempo de cura suficiente), operar uma transformação que se assevera catastrófica (v. conjugação dos DL 215/2006; DL 96/2007; DR 34/2007; e portarias: 373/2007 ; 376/2007 ; 395/2007). A DGEMN é extinta sem se perceber como os seus efectivos se integrarão na nova "ordem" patrimonial. O Ippar também é extinto, sendo criado o Igespar [Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico], que terá, ao que dizem, funções "normativas". Primeiro erro, e crasso. Só é possível assegurar funções "normativas" assegurando, igualmente, as funções "executivas". A força política das primeiras assenta na força persuasiva das segundas. Nada disso é garantido, pelo contrário.
O Ippar é desmantelado da pior forma possível. Os monumentos que se encontravam sob sua gestão directa, agora a atravessarem um período de penúria por causa da famigerada redução da "despesa pública", encontram-se semifechados por falta de pessoal (há com certeza economistas famosos que consideram que um serviço público se sustenta do ar). São estes mesmo monumentos - os que produzem mais receita de bilheteira - que passam agora para a esfera dos "museus" ou do novo IMC [Instituto dos Museus e da Conservação]. Será que vale a pena insistir no facto de um monumento, mesmo que com recheio museológico, não ser em nada idêntico a um museu?. Ninguém percebe que os espécimens móveis desses monumentos (e só conto dois com tais características, Ajuda e Pena) se encontram imobilizados por serem site-specific, tornando-se relevantes pelo invólucro arquitectónico que lhes dá sentido histórico e antropológico? Ninguém sabe que o mobiliário dos palácios de Sintra, Mafra, Queluz, Guimarães foi adquirido durante o século XX? Pelos vistos não. Pensando nas receitas, e só nas receitas, estes monumentos vão alimentar o orçamento "dos museus". Esquece-se o MC que a despesa com as obras permanentes de manutenção e restauro a que estão sujeitos os palácios é uma despesa em si mesma que ultrapassa as receitas. Sem esquecer o funcionamento, ele mesmo distinto do de um qualquer "museu". Quem vai investir? A dispersão destes bens é tão atabalhoada que até se dá o caso de ficarem de fora de qualquer tutela monumentos emblemáticos como Sagres, Tibães e Santa Clara-a-Velha.
Por outro lado, o Ippar, na componente autorizativa (salvaguarda), era já um serviço largamente descentralizado, com competências atribuídas às respectivas direcções regionais. Agora, com as direcções regionais de Cultura (uma delas em Odivelas, pasme-se!), na realidade uma espécie de "miniministérios da Cultura" (ocupando-se de tudo, mesmo dos subsídios às bandas filarmónicas), esse serviço fica entregue aos senhores directores regionais da Cultura, cujas competências de despacho são idênticas às do director do Igespar, que também tem autoridade na matéria! Dá-se, portanto, neste caso uma inédita sobreposição de (in)competências. A instalação destes serviços e a desinstalação dos anteriores constitui, em si só, um acréscimo de despesa que, só de início, estimo em cerca de 50 por cento dos recursos mobilizáveis para o sector. Assim se poupa...
Na perspectiva de um novo quadro comunitário de apoio, pergunto-me como e quem vai gerir os termos de referência e as prioridades de investimento? O Igespar?. Mas com que autoridade, se se operou uma "regionalização" das (in)competências e as novas direcções regionais quererão com certeza ter palavra no assunto? O futuro é sombrio, uma vez que a disciplina financeira necessária à optimização destes investimentos vai ficar submersa numa rede inextricável de burocracia. Mais despesa, portanto, e mal aplicada também: eis o que nos espera.
Valerá ainda a pena referir o caso da arqueologia? A extinção do IPA, sem que as estruturas do Igespar e das direcções regionais se encontrem minimamente rotinadas no sector, permite desconfiar da subalternização de uma área de trabalho patrimonial, tanto mais sensível quando hoje é impensável desempenhar tarefas de salvaguarda ou de intervenção física sem uma crítica arqueológica prévia.
Como balanço, verifica-se uma desafectação de recursos humanos válidos e uma desmotivação geral na área do património, perdendo-se a massa crítica que se foi construindo nos últimos vinte anos. Nenhum partido da oposição (irresponsável) faria melhor, caso pretendesse acabar com o sector do património. A actuação do MC ultrapassa tudo o que de pior anunciava o programa do PSD em 2002. É obra!
O que fazer? Reformar compulsivamente esta espécie de "reforma".
Professor universitário, ex-vice-presidente do Ippar em 1995-2002 »
26/04/2007
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