23/10/2006

Revitalizar ou desvitalizar a Baixa? (parte 2)

In Público (23/10/2006)
Opinião José Tudella

"Éum tema que, a ajuizar pelo enfoque das notícias do PÚBLICO, é fortemente tratado no estudo de reabilitação da Baixa-Chiado, tema sempre caro aos chamados meios cultos e que muito me comove quando vejo tratado. Quem e como poderá habitar a Baixa? Entendamo-nos: Não refiro as encostas adjacentes, mas sim a Baixa Pombalina propriamente dita.

Em jeito de intróito peço, caro eventual leitor, a sua atenção para o seguinte episódio: Há anos estanciava eu num pequeno hotelzinho situado na Rua de S. Lazare, em Paris. Ocupando todo o longo quarteirão fronteiro estendia-se majestoso o grande hotel do mesmo nome, separado posteriormente da estação ferroviária (também com idêntica denominação) por uma rua paralela. Esta e a de S. Lazare convergem ambas em duas pracinhas, uma de cada lado do dito grande hotel. Reparei que os edifícios situados de cada lado do meu hotelzinho eram hotéis também, assim como todos os demais até às referidas pracinhas. Todas as frentes dos edifícios destas ostentavam as denominações hoteleiras que os ocupavam, assim com pelo menos os primeiros edifícios das diversas ruas a elas concorrentes. Desisti de ver até onde chegava, em cada uma dessas ruas, a monotonia da qualificação dos imóveis, mas percebi como se pernoita, mas se não habita no centro (ou numa parte largamente substancial) do centro de Paris. Pensei em Lisboa e nas vicissitudes da Baixa e, para mim, ruminei com tristeza que a população flutuante da nossa capital não consegue infelizmente, nem de perto, nem de longe ajudar, como a parisiense, a resolver o terrível problema da desertificação do núcleo urbano central.

Nunca conheci a Baixa Pombalina habitada da maneira como é descrita na obra queirosiana. Conheci, sim, habitação já então pouco menos do que residual na Baixa não pombalina, ou seja, nos andares adventícios acrescentados aos volumes oitocentistas no sec. XIX adiantado, alcandorando-se acima dos prédios de r/c e três pisos da regra estabelecida despoticamente pelo Marquês de Pombal. É a Baixa dos quatro, cinco, ou seis pisos que conhecemos, com as cornijas dos beirados pombalinos transformadas em varandas corridas, rematadas por longas guardas de ferro forjado, varandas para onde se abrem os tais andares adventícios, geralmente sobrepujados por outros mais.

Creio ser nesses pisos adventícios - rebocados de novo, pintados de fresco e talvez dotados de elevadores, escadas novas incombustíveis e com bomba para melhor iluminação, pavimentos de betão, tabiques de madeira substituídos por tijolo, cozinhas e casas de banho novas, sem manilhas de esgoto à vista nos longos saguões de cada quarteirão, etc, etc, etc, tudo à maneira, mas sem estacionamento... - que vai morar a velhada e a moçalhada, trazidas sabe-se lá de onde e porquê?
Atenta a previsão de tais acantonamentos etários restritivos, talvez se deva perguntar aos Ilustres Comissionados [autotores do plano de revitalizaçãod a Baixa-Chiado] se uma unidade urbana com a dimensão da Baixa for habitada essencialmente por velhos e jovens deverá apelidar-se gueto, jardim zoológico, ou qualquer outra denominação de agregado vivencial menos rebarbativa; de bairro é que não, com certeza.

Seja qual for a fórmula através da qual se pretenda recriar uma Baixa habitacional, a rigidez hierática da zona, a falta de espaços vivenciais aconchegados, de equipamento comercial de uso diário, a poluição intensa e difusa e a falta de tantos mais imponderáveis, bem patentes num bairro habitacional dos nossos dias, nunca poderão, em conjunto, oferecer condições aceitáveis para moradores, quer sejam velhos, novos ou assim-assim. Já alguém reparou, por exemplo, aquelas "traseiras" constituídas por saguões lúgubres, alongados, mudos, com as janelas do vizinho fronteiro a devassar-nos, saguões que constituem estruturalmente o interior de todos os quarteirões da Baixa Pombalina, quarteirões enfileirados com os seus 25 módulos de frentes de rua entre travessas, quantitativo que lhes deu a denominação, ulteriormente generalizada como termo comum de linguagem corrente? Como transformar aquilo tudo em espaços alegres, humanizados, convidativos para viver? Irá algum dos comissionados envelhecer ali, com os filhos e netos em Carnaxide ou Odivelas, nos Olivais ou na Charneca da Caparica? Como dormiria o coitado desse ex-comissionário, já então caduco, tendo de gramar uma farra de garotada estarola, divertindo-se à ursa, com as janelas escancaradas e muita música rock, punk, ou lá como se diz, berrada com os graves da aparelhagem sonora todos abertos? Estou certo de que o coitado até veria o Arco da Rua Augusta a tremer como um pudim gelado e o cavalo do D. José a trotar em cima das cascavéis espavoridas!

Enfim, nos tempos que correm propõem-nos o túnel do Marquês de Pombal, caríssimo, imprestável e tão perigoso que só lá passarei se a tal for obrigado; o Parque Mayer atafulhado de edifícios colossais acavalados uns sobre os outros, destinados a hotéis, escritórios, teatros, cinemas, casinos, pavilhões e sei lá mais o quê todos amalgamados num logradouro interior que dispõe de uma só abertura (com 14m de largura apenas!) para a Travessa do Salitre (com 11m de largura apenas!) e agora esta Baixa, pletórica de intensíssimas actividades dos mais diversos foros (comerciais, lúdicos, culturais, turísticos, bancários e de serviços, incluindo o governamental) mas... sem automóveis, nem acessos mecânicos fáceis de e para as colinas envolventes!!! Além disso, uma Baixa também habitacional, mas só para velhinhos e novinhos (ou serão velhotes e novinhas)!... Caramba, tantos programas bombásticos parece-me serem iguarias pesadas, adubadas, difíceis de engolir!
Tinha razão a funcionária zelosa que me atendeu nas instalações da vereação. Fico-me com o seu fabiano conselho: do indigesto plano prospectivo da Baixa-Chiado provo apenas a informação jornalística... por menos ser maçuda.

A propósito de ágapes maçudos ocorreu-me, neste correr de escrita fagueira, com o seu quê de festim alfacinha, passado nas antigas hortas, a rábula indigesta de uma velha, muito velha revista teatral do antigo e fagueiro Parque Mayer, já então a alertar-nos para o perigo dos abusos prandiais, fartamente servidos por Chicos espertos mascarados de mestres Vatéis: Certo amigo comeu pão de luxo,/Mais valia comer lacrau./Porque a droga ao cair-lhe no buxo,/Era pez e não pão. Era pau!/À minha criada em Janeiro/Já cresceu a barriga uma vez./Também foi o ladrão padeiro,/Com o pau, com o pão, ou com o pez. Arquitecto
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