11/04/2007

O mar da Palha


O estuário do Tejo localiza-se no extremo ocidental do subcontinente europeu, sendo o maior da Europa Ocidental e uma das dez zonas húmidas mais importante para a avifauna aquática na Europa.

Após um percurso longo, de um milhar de quilómetros, e variado de terras e de gentes, o Tejo finda-se numa espécie de delta, entre ilhotas, conhecidas localmente por mouchões, para se encontrar num estreito gargalo, que faz a comunicação entre o grande oceano e o “regolfo-mar” Mar da Palha.
Neste pequeníssimo mediterrâneo na costa atlântica, que atraiu os homens e permitiu-lhes a riqueza, em sucessivas actualizações que a História e as Geografias vão, a um tempo, determinando e possibilitando, desenvolveu-se a actual área metropolitana de Lisboa.

No passado foi um mar de águas pouco profundas e pantanosas que constituíam um sistema deltaico entrecortado por inúmeros canais, apresentando actualmente a sua morfologia é bem diferente, apresentando uma forma irregular e recortes caprichosos, evidenciando uma evolução complexa.

Sendo um estuário de erosão, o Tejo está modelado por importantes depósitos de acumulação de sedimentos que, mercê da evolução geológica do estuário, se desenvolvem em grande extensão no Mar da Palha, entre Barreiro e Alcochete.

Os números do Estuário são impressionantes:
a) cobre uma área de aproximadamente 32000 ha;
b) cobre uma largura que varia entre os 2km e os 15km;
c) apresenta uma profundidade média de 10,6m;
d) fica emersa cerca de 40% da sua superfície na baixa-mar das marés de maior amplitude;
e) a influência das marés faz-se sentir até 80 Km de distância da barra, até Muge e a intrusão salina até 50 Km da barra, ou seja até Vila Franca de Xira;
f) a área máxima entre-marés sem vegetação, foi estimada em 116 km2, incluindo 16 km2 de antigas ostreiras e 100 km2 de bancos de vasa e de areia e os sapais ocupariam uma área de 2.000 ha.

Estruturalmente o estuário do Tejo pode ser dividido em quatro zonas distintas:
a) A zona mais a montante tem uma morfologia deltaica e estende-se desde Vila Franca de Xira até à linha de Alcochete/Sacavém, caracterizada por um sistema de mouchões, esteiros e grandes espraiados de maré, englobando, na sua quase totalidade, a Reserva Natural do Estuário do Tejo, de uma riqueza biológica enorme, albergando anualmente cerca de 100.000 aves invernantes;
b) Segue-se-lhe uma área que se estende até ao Cais do Sodré, conhecida por Mar da Palha, mais profunda que a anterior e constitui uma espécie de mar interior onde vêm desaguar vários rios e ribeiras, em que os recortes são designados de “calas”, onde se dá origem a uma ondulação denominada tradicionalmente por "bailadeiras".Aqui localizam-se os grandes empreendimentos industriais e urbanísticos, que circundam o estuário e onde se fazem a maioria das travessias por barco entre as duas margens da área metropolitana de Lisboa;
c) A terceira zona do estuário forma um canal com uma profundidade que chega a atingir cerca de 40 metros, que é delimitado pelas margens onde se situam as cidades de Lisboa e Almada, e onde começa gradualmente a dar lugar às águas marinhas até à linha Bugio/S.Julião.

As margens deste regolfo-mar são assimétricas na geomorfologia e, em parte por isso e muito pela acção dos homens, são-no também na paisagem social e económica:


Na margem norte, menos recortada, os afluentes, Ribeira de Alcântara, a jusante, e Rio Trancão, a montante, definem pelo encontro das suas bacias, o quadro onde caberia a escolha para o sítio original de Lisboa, que viria a ter lugar entre os vales de Alcântara e Xabregas. A partir daí, a urbe crescerá linearmente ao longo da margem, projectando novos estabelecimentos humanos nas duas margens do seu mediterrâneo, prolongando-se por ribeiros e esteiros, até onde a navegação (e a maré...) o permitem.


A margem esquerda, mais recortada, irá organizar-se segundo um rosário de sítios, sempre aproveitando as vantagens que conferem a relação terra-água – as “calas” - e a proximidade de um mercado, cidade e porto, que por essa qualidade alarga as redes de contactos, as oportunidades.


Ao longo de dois milénios, sucedem-se as indústrias - extracção de ouro, vidro, sal, cerâmicas, pesca e conservas, moagens, cortiças, matadouros, estaleiros navais, químicas, siderurgia, electrónicas, automóveis e muitas outras, aproveitando janelas e postigos de oportunidade, surgindo posteriormente, depois da construção da Ponte sobre o Tejo, a denominda “Margem Sul”, constituída por uma das zonas suburbanas mais densamente povoadas da região de Lisboa.


Unidas por duas pontes, as duas margens sempre estiveram ligadas pelas relações dos homens, materiais e espirituais. Se os empresários o perceberam e praticaram, os poetas souberam assinalá-lo. As religiões imprimiram-lhe as marcas mais fortes e duradouras: o Cabo Espichel foi destino de grande peregrinação muçulmana, dos mouros que habitavam a envolvente ocidental (até Sintra) e setentrional (até Lumiar) de Lisboa, e essa peregrinação foi "cristianizada", mantendo-se com os seus círios até aos nossos dias; a Senhora da Atalaia, nas antigas terras de Ribatejo e que hoje são do concelho do Montijo , era até há pouco tempo local de romaria para as gentes de Lisboa oriental, de Alfama a Marvila, como nos descreveu Fialho de Almeida, à sua maneira. Ora, como rezam os documentos, D. Afonso Henriques doou à Mitra de Lisboa "todas as rendas e terras de Marvila que possuíam as mesquitas dos Mouros"! e, talvez não só por mera coincidência, a Herdade da Mitra, até ao século XV na posse dos Arcebispos de Lisboa, no século seguinte é património do Morgado de Pancas e Atalaia!


Na cidade e alfoz imediato, nos primeiros tempos, de Roma a Portugal, a banda ocidental, orientada para o lado do Oceano, teve os maiores favores na valorização económica e monumental, mas a simetria acabaria por se impor ainda na Idade Média: de Alcântara (Calvário) a Marvila, sucedem-se, em contraposição equilibrada a partir do núcleo central, os conventos, os palácios e as quintas senhoriais peri-urbanas. O Rio Trancão, navegável, "prolonga" a urbanidade até aos Tojais e a Loures, onde grandes dignatários da Nobreza e do Clero constróem palácios, como o da Mitra, do Monteiro-Mor, do Correio-Mor.


As duas penínsulas, de Lisboa e de Setúbal, que formam hoje uma área metropolitana, envolvendo o Mar da Palha que, mais que um regolfo por onde entra o Tejo, devagarinho, por entre ilhas (mouchões), no vai e vem das marés, é realmente um Mar, por isso tem toponímia adequada.


O insucesso portuário e o declínio das actividades industriais originaram uma degradação da paisagem e a degradação acentuou-se com a desorganização de implantações portuárias ou industriais precárias, com o fecho de unidades e a imparável suburbanização da metrópole.

As grandes manifestações urbanas têm sido oportunidades para a requalificação total ou parcial das cidades, como a Exposição do Mundo Português, em 1940, serviu para valorizar a zona ocidental, de Santo Amaro a Pedrouços/Restelo e a a Expo 98 que, para muitos, foi vista não só como um factor de promoção do País e da sua capital, mas sobretudo como um catalisador do processo de regeneração funcional e urbanística da área metropolitana.

Neste contexto deve ser ter-se como primado estrutural a reposição do normal desenvolvimento urbano ribeirinho, em torno do Mar da Palha, que prevaleceu ao longo de 19 dos 20 séculos de história da cidade de Lisboa e a sua disseminação pelas restantes cidades metropolitanas, mas também a reinvenção da cidade.


Quantas mais cidades no mundo possuem esta localização fenomenal, com potencialidades urbanas, portuárias, turísticas e ambientais?

Quantas mais cidades desenvolvidas do mundo desperdiçam estas potencialidades, ignoram qualquer planeamento e insistem nos erros do passado, tal como as cidades da área metropolitana de Lisboa e demais autoridades públicas, como o Porto de Lisboa?

Nota: Fontes

Sérgio Gaspar in
http://www.ub.es/geocrit/sv-38.htm
Rotas & Destinos in http://www.rotas.xl.pt/1102/a01-00-00.shtml
Foto de António Fery Antunes in http://www.olhares.com/fery

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