Miguel Sousa Tavares no Expresso de 3/11/2007
"Mais um vez regresso ao tema: o Terreiro do Paço e essa iluminada promessa eleitoral de António Costa de o "devolver" aos transeuntes e lisboetas, "libertando-o" de circulação automóvel aos domingos. Já tinha avaliado pessoalmente os transtornos causados a centenas, milhares de outros lisboetas que, circulando muito legitimamente de carro aos domingos, na cidade ou para fora dela, não só deixaram de poder ver o Terreiro do Paço como ainda ficaram sujeitos a eternizarem-se em engarrafamentos nas vias alternativas de circulação ou a optarem por largos desvios do seu trajecto normal para evitarem o caos causado pela promessa eleitoral de António Costa. Mas faltava-me ver o resultado útil do Terreiro do Paço "devolvido aos lisboetas".
Domingo passado, resolvi fazer a experiência e o que vi, que atesto por minha fé e que relato, encerra uma lição eloquente sobre os efeitos práticos da demagogia na política. Entrei a pé na praça, começando por constatar que havia três polícias municipais de serviço em cada rua de acesso, velando pelo cumprimento da ordem do senhor presidente da Câmara. Seriam ao todo uns vinte ou trinta, seguramente pagos em horas extraordinárias pelos arruinados cofres da CML. Na praça, propriamente dita, reparei, ao entrar, num gigantesco palco negro para eventos, tapando a vista do Tejo e deserto de eventos e de gente. Um ciclista circulava à roda - um; três raparigas estavam sentadas no chão, junto ao D. José; um casal jogava pingue-pongue (ó, genial ideia!) numa mesa colocada nas arcadas; quatro turistas olhavam à volta, com um ar perdido; e, ao fundo, consegui distinguir duas crianças pelas mãos dos respectivos progenitores. E, depois, polícias e mais polícias: havia mais polícias a travar o trânsito automóvel do que transeuntes na praça. Nunca em dias da minha vida tinha visto o Terreiro do Paço tão deserto: até parecia que o Putin ia passar por ali.
Resolvi então ir experimentar o muito falado cozido dos domingos do chefe Vítor Sobral, no restaurante que tem o nome da praça. Mas eis o inesperado: aos domingos, justamente, o restaurante só serve sanduíches e refrigerantes, numa pindérica esplanada de mobília de fórmica colocada em plena rua. Em recurso, tentei o Martinho da Arcada, a única alternativa, mas estava fechado; em desespero, tentei todos os outros restaurantes das proximidades, mas estavam todos também solenemente fechados - aliás, estava o comércio inteiro. Enfim, conformado e esclarecido, regressei aonde tinha deixado o meu inestimável carro, que me transportou para onde o dr. António Costa não declarou ainda zona liberta e onde havia um restaurante de portas abertas para me receber.
Já Santana Lopes, à míngua de quaisquer ideias para Lisboa, que nunca teve, havia feito a experiência politicamente correcta de fechar o Chiado e o Monsanto aos automóveis durante os fins-de-semana. A experiência terminou a tempo de evitar a desertificação de ambas as zonas, mas, pelos vistos, não serviu de lição para o futuro. Há ideias feitas e demagógicas (talvez produzidas numa dessas agências de comunicação da moda, que tratam de fazer eleger os políticos e fornecer-lhes ideias) que são mais teimosas e triunfantes do que qualquer verdade visível a olho nu. Mas, quem sabe, talvez um dia destes o dr. António Costa queira ir, incógnito, almoçar ao Terreiro do Paço ao domingo. E a pé, não no carro de serviço."
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