In Público (1/11/2009)
Por Inês Moreira Santos
«É um património disperso e, se não totalmente ignorado, tem andado esquecido. Algum está classificado, mas não musealizado, e é hábito haver a tentação de o destruir
Há um grupinho que continua a deambular semanalmente por Lisboa, de olhar ávido, que procura um novo pormenor à mínima chamada de atenção, sedento de mais conhecimento, ou, vá lá, por mera curiosidade. Já foram mais, perto de cem, agora costumam ser 30. Mas conhecem-se todos. As suas idades juntas somam um ror de anos, muito mais que os 30 que já lá vão desde que se conheceram. Foi em 1979 que se realizou o primeiro Passeio de Domingo, em Lisboa, com ponto de encontro junto à estátua de D. José, no Terreiro do Paço. Desde então já se realizaram mais de mil visitas guiadas, sempre tendo por cicerone um perfeito conhecedor da matéria, não só ao domingo, mas também ao sábado e ao longo do fim-de-semana, tanto na capital, como no resto do país, organizadas pelo Centro Nacional de Cultura (CNC).
Helena Vaz da Silva foi a mentora desta iniciativa que já deu a conhecer o património histórico-artístico e etnológico português, através de visitas a museus, monumentos, fábricas, bairros, escolas, ateliês de artistas, restaurantes e casas particulares. Assim como o património natural do país através de marchas na montanha, subida de rios, prática de espeleologia e visitas a reservas naturais.
O geólogo e professor universitário Galopim de Carvalho, conhecido como "o homem dos dinossáurios", foi o recente guia de mais um passeio, que percorreu quatro dos mais importantes geomonumentos que se podem encontrar nas ruas de Lisboa. Tratam-se de raros afloramentos rochosos com milhões de anos, que, pelo seu valor histórico, são reconhecidos como monumentos geológicos, um património natural que muitas vezes se ignora. O passeio contou com cerca de 30 participantes, o limite estipulado pelo CNC.
"Os primeiros testemunhos de rochas aqui na região onde vivemos" têm entre 90 e 100 milhões de anos, explica Galopim de Carvalho, a caminho da primeira paragem na Rua de Sampaio Bruno, em Campo de Ourique, uma rocha com 20 milhões de anos, que o geólogo muito lutou para conservar.
Nos dentes da escavadora
Trata-se de um resto de "rocha que não tinha sido destruído pela construção civil", afirma o professor universitário. Aquando do mandato de João Soares na Câmara de Lisboa, foram feitas diligências para preservar o local. Contudo, uma moradora no prédio em frente alertou Galopim de Carvalho, pois estava uma escavadora no local, pronta a demolir o resto de rocha, para se proceder à construção de um parque de estacionamento. O geólogo deslocou-se então ao local para evitar a destruição daquele raro exemplar com 20 milhões de anos e, colocando-se à frente da escavadora, disse a famosa frase: "Só por cima do meu cadáver", conta, divertido. Conseguiu evitar a demolição, mas, ainda assim, parte da rocha já tinha sido derrubada.
Galopim de Carvalho lamenta o facto de este geomonumento não ter manutenção, apesar da vedação que o circunda, estando rodeado de algumas garrafas vazias e outros detritos. Um dos participantes do passeio chama a atenção do guia para a presença de um pequeno graffito, por baixo dos azulejos que ilustram os componentes da rocha, onde se pode ler: "Daqui a 20 milhões de anos, eu ainda te amarei". Galopim de Carvalho encara a situação com algum humor e fotografa a inscrição.
O próximo destino é a Avenida do Infante Santo, onde estaca a marcha, pois é onde se encontram os mais antigos terrenos da cidade de Lisboa, já anunciados pelo geólogo. De um dos lados da avenida está um geomonumento que ainda não foi recuperado, mas que está classificado desde 1999. Do outro, um monumento geológico, que já se encontra num local jardinado. Galopim de Carvalho alerta para a cor escura que se pode notar em algumas partes das camadas de calcário. Trata-se de "gesso com borracha", explica. O cristal de gesso vai crescendo cheio de partículas de borracha, devido à poluição que se verifica, junto a uma movimentada avenida da cidade. O professor universitário chama-lhe "cristal urbano", em tom de brincadeira.
A falta de um roteiro
A companhia passa adiante, e é junto de um dos arcos do Aqueduto das Águas Livres, na Avenida de Calouste Gulbenkian, que se encontra o último geomonumento a visitar. Trata-se de um afloramento de calcário em camadas horizontais do Cretáceo e, tal como os outros três locais que se visitaram hoje, também este está classificado. Galopim de Carvalho explica aos presentes que, em tempos, houve um painel que o comprovava, no entanto, foi roubado aos lisboetas.
O geólogo lamenta não existir um roteiro para os geomonumentos: "Só vem aqui quem sabe que isto aqui está", e explica que, aquando do terramoto de 1755, o Aqueduto das Águas Livres terá resistido intacto, muito provavelmente graças àquela rocha, muito resistente, que o suporta.
O geólogo acrescenta que, actualmente, a Câmara de Lisboa "tem determinações camarárias que impedem que [estes geomonumentos] sejam destruídos. Portanto, estão classificados, mas nem todos estão musealizados". "Neste momento, a câmara já tem mais uns dez classificados além destes, mas estão todos numa fase de espera", acrescenta Galopim.
A preocupação com a preservação dos monumentos geológicos teve início na vereação de João Soares e recomeçou com António Costa.
No final de mais um passeio, o balanço que Galopim de Carvalho faz é positivo: "Acho que esta visita correu melhor do que aquelas que faço com as escolas. Até porque são adultos, estão cá porque querem estar, vêm motivados, vêm interessados e mostram outra atenção". O "homem dos dinossáurios" tem estado sempre disponível para colaborar com o CNC e mostra-se satisfeito por não porem "de parte a cultura científica".
Para assinalar os 30 anos dos passeios, este trimestre o CNC contactou antigos guias para acompanharem as visitas. Dia 29 haverá um passeio com os dois primeiros guias ao Museu do Chiado, disse Alexandra Prista, directora de actividades correntes do centro.»
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