02/06/2009

Sem Terreiro nem Paço

In Público (2/6/2009)
Margarida Saavedra

«Há perdas que são colectivas: quando um denominador comum desaparece ou, mercê de diversas circunstâncias, se transfigura, todos ficamos mais pobres. Quando essas circunstâncias se devem a factores externos (um terramoto, um bombardeamento, etc) mesmo as sociedades mais diversificadas são capazes de concentrar esforços para a sua recuperação. Quando se devem a acções deliberadas, torna-se imperativo que a mudança traduza o resultado do envolvimento comum pois, se assim não for, o património que era de todos corre o risco de se transformar no instrumento de alguns e, portanto, no símbolo dum regime autocrático totalmente insuportável para uma sociedade democrática: é uma perda que ultrapassa largamente o valor do objecto em si porque transporta no seu seio o estigma duma violentação.
A simbologia da coisa comum está para além do valor intrínseco do objecto porque guarda a memória de um povo e, muitas vezes, é a tradução visual da sua identidade.
O Terreiro do Paço, mais do que o símbolo do marquês de Pombal, mais do que o símbolo de Lisboa é, muitas vezes, a imagem que se "cola" a Portugal: é, digamos, um dos seus logótipos. De tal modo que inúmeras tentativas para o modificar, infindáveis projectos para o alterar, chocaram na barreira sagrada da nossa afectividade. Nem a República, crismando-o como Praça do Comércio, rectificando a toponímia em todos os documentos oficiais, conseguiu que, quase cem anos volvidos, deixássemos de lhe chamar Terreiro do Paço. O facto de ser considerado genial como praça tornou-o um dogma.
Para a comemoração dos cem anos da República, o Terreiro do Paço é incontornável: uma vez mais, o nosso mundo afectivo ligou o alarme perante a iminência duma blasfémia.
A polémica aí está: se uns há que têm a humildade de reconhecer que apenas se poderá defender uma intervenção minimalista, outros não resistirão à arrogância de aí deixar a impressão digital como se se tratasse dum passeio da fama.
Mas algo de mais profundo se esconde no fumo desta polémica: ninguém perguntou aos portugueses se queriam ver o Terreiro do Paço retalhado por escadarias de mármore; ninguém perguntou aos portugueses se queriam ver o Terreiro do Paço seccionado por losangos; ninguém perguntou aos portugueses se queriam um pavimento multicolor que se imponha às arcadas; ninguém perguntou aos portugueses o que queriam fazer do Terreiro do Paço
Para celebrar o centenário de uma república com cidadãos de pleno direito, a câmara, da confiança do Governo, conluiada com o Governo de confiança da câmara, entrega as obras do Terreiro do Paço à Parque Expo, da sua confiança, que por sua vez as entrega a um atelier da sua confiança, para executar um projecto de confiança.
Sem participação pública, sem concursos públicos; sem discussões públicas; SEM DEMOCRACIA
O presidente da câmara, com o seu voto de desempate, quis calar as vozes discordantes. O que quer que venha a ser feito no Terreiro do Paço vai transformá-lo de palco da nossa estima, no estigma da nossa violentação. Vereadora do PSD na Câmara Municipal de Lisboa»

6 comentários:

Pedro Homem de Gouveia disse...

A designação "Praça do Comércio" não veio com a República, mas sim com o projecto original, pós-terramoto.

Anónimo disse...

Caro PHG todos nós sabemos isso, é exactamente por esse motivo que o oportuno artigo de MS pretende esclarecer.
A républica sempre lhe deu jeito apelidar de Praça do Comércio, por esse motivo é imcompreensível a valorização do rei, do aparato, do eixo, tentando transformar o terreiro numa praça real, ironia do destino para festejar uma républica na praça aonde o Rei e o Principe Perfeito foram injustamente assasinados.

S.O.S. disse...

Comentário do subscritor nº471 da petição, J.S. Marques:
"Arquitecto escolhido sem concurso. Projecto feito sem caderno de encargos. Decisão tomada à pressa. Desenhos secretos, que só foram apresentados em âmbito restrito. Soberba arrogância do arquitecto e do Presidente da Câmara. Isto não é próprio de uma democracia. Em qualquer país civilizado o processo devia começar pela consulta e ser elaborado por uma equipa pluridisciplinar que vencesse um concurso público!"

HOMOSAPIENS disse...

Eu para mim o arquitecto teve inspiração da cobertura da capa do jogo de computador THE SIMS 3.LOOL Espreitem bem é quase identico um grande losango verde e uma multitude de pequeninhos losangos. Deve estar na FNAC. Olhem bem é quase igual.

Ferreira arq. disse...

"Real Praça do Comércio" tal como é designada na legenda da planta geral de Lisboa do projecto de Heugénio dos Santos e Carlos Mardel.

Mas agora há por aí quem faz a apologia que "a arquitectura não se referenda"..., querendo com isso justificar atitudes de regime, colaboracionistas, avalisadoras de cartas em branco a projectos demolidores para a nossa cultura e para o nosso património.
Servir projectos aos bochechos, conforme vai sendo executada a obra, para um local com o impacto urbano e a história desta praça, é uma leviandade.

Compreende-se esta metodologia de trabalho em obras novas, pois permite mesmo evoluir o projecto com os novos dados que vão aparecendo, tirando partido das condições e conhecimentos dos executantes da obra; permite antecipar a obra, enfim, será até aceitavel.

Agora neste local?

Ainda por cima tendo tomado opções radicais perfeitamente discutiveis?

Com que direito vão manter aquele local sem árvores?

Continuo na minha que tal é inadmissível, e a entender que o espaço agora projectado, para além de não respeitar o conceito do projecto inicial de espaço de "Praça", não o vai ser, não vai resultar. Vai ser um palco de vaidades para utilizações pontuais, para fazer uns postais para mostrar, para dizer que temos. Não para a população usar.

Isto não é arquitectura urbana. Pode ser arquitectura de espaço edificado interior.
Trazer isso cá para fora, neste caso que interfere com a nossa cultura, digna de um dos períodos mais marcantes da nossa história... é uma asneira grave.

E foi um risco tal, que agora vemos de todos os quadrantes da sociedade interpelações atentas e certeiras, condenando aquilo que se via mesmo à partida que era um atentado cultural.

É pena a Ordem dos Arquitectos, ou os seus membros, não terem sido os primeiros a pugnar por um processo democrático e atento aos valores sociais e culturais num caso como este, em vez de uma atitude até bastante corroborativa e concertada para tais actos.
Mas afinal, quem vai ganhar com tais atitudes?

Ferreira arq. disse...

As minhas desculpas, mas aquele Eugénio saiu-me mesmo a parecer um "Henrique"...

Fotos da planta referida em:

http://forumsociedadecivil.blogspot.com/2009/06/real-praca-do-comercio-tal-como-e.html