20/09/2009

«O FUTURO DAS CIDADES»


Sou uma coleccionadora de cidades. Prefiro-as à grande natureza, que acho vagamente opressiva. Uma cidade no Outono, quando a gente regressa de férias, é um prazer. Uma cidade são cafés e esplanadas, ruas cheias de movimento, lojas bonitas, lojas abertas fora do horário, transportes públicos de qualidade, variedade da população, imigrantes integrados, jovens moradores, parques e jardins, ruas arranjadas, bicicletas e transportes alternativos, estacionamento adequado, moda de rua, livrarias com cafés lá dentro, restaurantes e bares, museus e bibliotecas, exposições e concertos, teatros e clubes, propostas exóticas e ambiente protegido. Uma cidade tem de ter um jardim em cada bairro, população jovem, crianças e velhos, alegria nas ruas, pequeno comércio, oferta cultural, carros afastados dos centros. Entre outras coisas.

Quando desembarco em Lisboa tenho sempre a sensação de uma apatia que mergulha a cidade nessa melancolia que alguns cantam e que é sintoma das doenças da capital. Desembarcar na Portela num domingo e fazer uma viagem de táxi por Lisboa, a ouvir um relato de futebol aos berros, é uma experiência terminal. Em alto contraste com a chegada a uma capital europeia. A terra de ninguém das Avenidas Novas, o inconcebível monumento a Sá Carneiro no Areeiro, os caixotes vidrados da Avenida da República e da Fontes Pereira de Melo, as árvores sombrias do Campo Grande, o desapego ventoso do Parque Eduardo VII, as lojas fechadas da Avenida da Liberdade, a deserção da Praça dos Restauradores (mais feia do que nunca), o vazio e decrepitude das ruas da Baixa, levam-me a pensar o que terá acontecido durante todos estes anos para Lisboa ter chegado a este estado vil.

Com excepção do Chiado e do Bairro Alto, onde se ouve música e se vêem jovens e não velhos com ar abatido, e da LX Factory (condenada a prazo) toda a Lisboa é uma neura, a neura de que falava Cesário Verde. Quem conhece outras cidades sabe que a cidade é o lugar onde se vê o futuro. Vê-se o que vai acontecer. Em Lisboa vê-se o passado. Em certos domingos, a Lisboa de certos bairros é a Lisboa do tempo de Salazar, a Lisboa das fotografias a preto-e-branco do Estado Novo. A Lisboa da Morais Soares e da Almirante Reis, de Arroios e do Campo Santana, do Conde Redondo e da Duque de Loulé, da Mouraria e dos Anjos, de Alcântara e do Rato (seria possível fazer pior do que o Rato?), da Estrela e da Lapa.

Uma Lisboa silenciosa e posta em sossego, com ruas esburacadas e mal calcetadas, carros estacionados em todos os espaços, velhas que espiam nas janelas, homens que cospem para o chão quando passa a carrinha funerária. E cheiro a chichi de gato, como dizia o Solnado. Com excepção do Chiado, que teve um princípio de esforço de "colonização", e do esforço inacabado do Bairro Alto (graças à visão, entre outros, do empresário Manuel Reis), e do bairro de Campo de Ourique ou das ruas adjacentes à Avenida de Roma, tudo o resto mudou pouco em 35 anos. A Expo melhorou a zona mas não é mais do que um subúrbio de luxo. Os condomínios privados espalharam-se e os centros comerciais também, matando a vida das ruas, eliminando os cinemas, eliminando os cartazes e os néons. Eliminando a vida. Sobram bancos, que matam as fachadas, e medonhos edifícios públicos e escritórios.

A oferta cultural é infinitamente maior e apesar disso a Baixa é um deserto e o Terreiro do Paço uma área de desastre. A Lisboa à beira-Tejo está tomada por monstruosidades e pelo porto, e o metro, esse modo simples e rápido de deixar o carro à porta, anuncia com estalo que irá até às Amoreiras. Daqui a uns anos. Como se fosse uma grande novidade. Os moradores de Lisboa têm mais dificuldade em deslocar-se dentro de Lisboa do que os da Pontinha.

Várias cidades, de Istambul a Edimburgo ou Sevilha, de Dublin a Berlim e Praga, apostaram nos eléctricos rápidos como meio de circulação. A preocupação 'verde' reina. E os novos empreendedores conseguem 'furar' e abrir pequenas lojas e bares, cafés e galerias, cabeleireiros e restaurantes que atraem os jovens, enfeitam as ruas e as alegram.

Lisboa, fora do centro histórico e do parque temático para turistas, não passa de um desolado subúrbio.

Em vez de mais planos megalómanos e estratégias o que Lisboa precisa é de micromanagement. Serviços decentes, transportes 'verdes', proibição de mais centros comerciais e condomínios privados, atracção da população jovem, recolha e reciclagem do lixo, plantação de árvores, incentivos aos novos empresários e comerciantes, regulação do mercado da habitação e escritórios, arquitectura integrada, responsabilidade dos moradores e proprietários no governo dos bairros. Substituir os carros de vez. Será assim tão complicado? Clara Ferreira Alves in EXPRESSO, 14-9-2009

Fotos: Rua da Padaria e Rua da Madalena

5 comentários:

Falam, falam, falam disse...

Aposto que a D. Clara Ferreira Alves não anda de carro: só de transportes públicos.

Anónimo disse...

A verdade La Palice, todos já apanhámos Taxis no aeroporto, todos consideramos que os centros comerciais são um desastre para as cidades, só é pena que alguns opinion leaders se lembrarem e colocarem do lado de quem realmente prejudicou a cidade, a gestão autarquica desde Abecassis tem sido um desastre.
Perdemos excelentes oportunidades, o Casino no Parque Mayer poderir catapultar a avenida da Liberdade, o Centro Colombo e Vasco da Gama são o cancro da cidade. Assim como toda uma legislação estupida qe impede os usos misto, e favorece o zonamento.
Procurar resolver o trânsito sem se criar atractividade dos bairros, nomeadamente na Baixa-Chiado (e Centro Historico) será um erro que Lisboa vai pagar caro.
Os diverosos planos, e a estrategia ou plano de mobilidade da actual gestão autarquia irá provocar um exodo das familias e empresas para fora de Lisboa.
Lisboa segue um rumo errado e não se vêem melhorias num futuro proximo.
Os próximos equipamentos são fundamentais para alterar o curso das coisas. E já perdemos um deles com a estupidez de realizar o Campus de Justiça concentrando os tribunais e desertificando algumas zonas da cidade de Lisboa.
O hospital de Todos os Santos, a Estação Central de Lisboa, a futura feira popular e outros podem ser um sucesso em Lisboa.
O hospital com regenerador social da zona de Chelas; a estação central como catalizador da conexão da cidade antiga com a cidade "nova" nas Olaias/Av. EUA; feira popular; entre e Marvila/Xabregas.
Quanto a 3ª Travessia deverá ser reequacionada pois a sua localização será um grave prejuizo para a cidade de Lisboa como também para a margem Sul.

Anónimo disse...

em vez de visões radicais (acabar com os carros e acabar com os condomínios privados -- não são todos os condomínios privados?) e visões demagógicas (explique como vai atrair população jovem e regular o mercado de habitação) o que precisamos antes de mais é fiscalização do cumprimento das leis e regulamentos que já existem (por exemplo, o código da estrada, que no artigo 49 explica qual as coimas a aplicar a quem estaciona em cima de passeios; ou o regulamento de resíduos sólidos urbanos que no artigo 19 explica quando e como depositar o lixo na via pública para ser recolhido, e mais adiante no artigo 47 explica as coimas a aplicar a quem assim não o faz).

Anónimo disse...

concordo com o sonho de cidade, mas não vai lá com essas medidas de acabar com condomínios e centros comnerciais.

tudo tem lugar nas cidades, como se vê em qualquer cidade do mundo.

a estratégia do 8 ou 80 é fundamentalismo.

zé da burra o alentejano disse...

Os parques de estacionamento junto das estações da CP, FERTAGUS, METRO deveriam ser gratuitos para desincentivar a entrada na cidade de automóveis.
Os estacionamentos, onde eles existem, são caros e, em consequência, vêem-se dezenas de automóveis estacionados perto dos, muitas vezes em locais inadequados quando existem muitos lugares vagos nos parques de estacionamento especialmente construídos para servirem essas estações.
Na realidade o preço do estacionamento é relevante quando se considera a despesa mensal do passe para o transporte mais as despesas mensais de estacionamento no parque.
Os nossos preços são muitas vezes comparados com os dos outros países da comunidade, mas o que deveria ser comparado era o nível de rendimento de um português mediano. Os portugueses não são idiotas quando preferem deixar a sua viatura a um canto da estrada, numa rua a trezentos metros de distância ou num terreno baldio em vez da a deixarem no local especialmente concebido para a receberem; falta-lhes é o dinheiro.
Deixem-se de conversas ocas e haja bom senso!

Zé da Burra o Alentejano