05/02/2012

A Baixa já não é uma zona de mansardas só para idosos




Por Carlos Filipe in Público
Novidades no coração de Lisboa: estão de volta os habitantes que foram assentar vida fora da cidade. A freguesia de S. Nicolau está em contraciclo

A oferta de habitação na Baixa pombalina, do Rossio ao Terreiro do Paço e até ao Corpo Santo, área geográfica da freguesia de S. Nicolau, tem aumentado, mesmo que varie entre os 350 e os 900 euros, o valor de renda de um T1 (um quarto) remodelado, com área até 60 metros quadrados. Para aquisição, oscilam dos 200 mil aos 500 mil euros, consoante as tipologias. Mas se os valores geram sentimentos mistos, corre mais sangue no coração da cidade.
Se o concelho de Lisboa, segundo os Censos de 2011, perdeu em dez anos mais 3,7% da sua população, a novidade é que S. Nicolau recuperou quase metade da que tinha perdido. E terá ainda muito para ganhar, a avaliar pelo potencial contido nos mais recentes dados estatísticos, já que 49,5% dos seus alojamentos estão por ocupar. Aquele instrumento revela que a população total (presente) da freguesia é agora de 2230 pessoas, quando em 2001 era de 1550 (aumento próximo dos 44%), acréscimo que baixa para 27% no que se refere à população residente - eram 1175, são agora 1500.
Serão esses novos residentes "populações imigrantes que se instalaram em edifícios relativamente degradados e, por isso, com preços acessíveis", como refere o mais recente boletim informativo do Observatório da Região de Lisboa e Vale do Tejo? O presidente da Junta de Freguesia de S. Nicolau, António Manuel, eleito pelo PSD, contextualiza os números, referindo haver trabalho de casa feito pela junta e pela câmara que justifica aqueles acréscimos: "Criaram-se instrumentos estratégicos de reabilitação do edificado, as medidas preventivas, e em 2010 o Plano de Pormenor e de Salvaguarda da Baixa, permitindo que não se fizessem apenas obras de manutenção, que era apenas o que o Plano Director Municipal permitia, pois tudo o resto era considerado ilegal. Assim que aprovados estes instrumentos, entraram mais de 300 pedidos de licenças para obras de habitação na Baixa desde 2008. Isto é indicador de grande apetência pela Baixa."
E acrescenta: "O vereador do urbanismo [Manuel Salgado] disse-me que é a zona de Lisboa com maior pedido de licenciamento para obras. Hoje, a Baixa já não é só uma aldeia de mansardas, nos últimos andares, habitados por pessoas idosas, mas por novos moradores."

Mas quem são?

O autarca não resiste a fazer comparação com a freguesia homónima, no Porto, que também corresponde à Baixa, sublinhando que aquela sofreu um decréscimo populacional de 36% desde 2001. E aponta outras razões para o aumento de velocidade: "São 290 mil metros quadrados de área devoluta. São centenas de fogos e de prédios. Mas se antes de 2008, antes da crise, se pudesse fazer obras, a situação, hoje, seria bem diferente. Agora, esta conjuntura volta a prejudicar a Baixa."
A conjuntura colocou travão aos casais novos, alguns recém-licenciados, professores, outros com profissões liberais, ou ligadas às artes, que, mergulhados na freguesia, se apaixonavam e ficavam. Agora prevalecem os arrendamentos. "Há muitos estudantes, também de Erasmus [importantes parcelas para o grande aumento da população presente]", identificou o autarca quanto aos novos residentes. Entre a Baixa e o Castelo de S. Jorge há 1800 camas, distribuídas pelas residências universitárias e os alojamentos hostel. Segundo a junta, estão quase permanentemente ocupadas.
António Rosado, da Associação dos Moradores da Baixa Pombalina, não entende aqueles grupos, na totalidade, como moradores-residentes. "Há mais gente, não serão muitas famílias, serão muitos estudantes, mas seguramente não muitos imigrantes, pois encontrariam alojamento em outras zonas de Lisboa, mais baratas, bem servidas de transportes, e não muito distantes da Baixa, casos da Almirante Reis, Chile, Morais Soares."
Segundo o presidente da junta, "[os novos] compram o andar, de uma forma geral fracções em prédios já reabilitados". Nos prédios antigos, só quando as fracções ficarem livres é que os proprietários os reabilitarão, mesmo que disponham de mecanismos de apoio e que por lei tenham que a fazer a cada oito anos. "A câmara não actua como devia, pois já não consegue arcar com tantos custos da intervenção coerciva", observa o autarca. "Há uma inércia de repouso na Baixa e há especulação. Há gente que acha que tem a sorte grande nas mãos, pede acima do que o mercado está a praticar. É uma altura má, que poderá voltar a prejudicar a zona", diz António Rosado.
A idade média dos residentes baixou consideravelmente, rebentando com a percepção de que a Baixa é território só para idosos, pois de acordo com um estudo da junta da freguesia, baseado nos recenseamentos, 86% da população tem até 55 anos de idade (a maioria até 35 anos), e o restante mais de 55 anos.

Já diziam os romanos

"Entranha-se. Como diziam os romanos, é genius loci, o espírito do lugar, é o que tem a Baixa. Quem aqui vive gosta e a oferta cultural é única, a zona é plana, vende-se aqui de tudo e tem bom serviço de transportes", defende o presidente da junta, desde 2005 no cargo.
Mas também há queixas de quem vive na Baixa. Entre o autarca e o dirigente associativo encontra-se um denominador comum: a degradação do edificado. As escadas em mau estado, os quadros eléctricos, canalizações, que penalizam ainda mais os idosos que ali residem. Mas se António Manuel apontou o dedo ao trânsito - "enquanto não se reduzir o trânsito, drasticamente, como nos outros centros históricos, não haverá melhoria" -, António Rosado encontrou uma grande melhoria no estacionamento. "Havia pouco, agora é quase só para moradores, que não é à porta de casa, que isso é um luxo, mas quem quiser vir para aqui morar terá lugar para o carro, o que antes não acontecia." O autarca também o garante: "Esta freguesia foi pioneira ao proporcionar aos seus moradores lugares para a viatura. Na Rua dos Douradores é só para residentes."
O comércio tem estado muito instável na Baixa. Fecha velho, abre novo, proliferam lojas de oportunidades, pequenas lojas, quase de vão de escada. É actividade para novo denominador-comum. "Muito coisa fechou, outra vai fechar. É típico de comércio que não se modernizou. Há mistura de comércio e serviços que hoje já não tem tanta procura. E há mistérios: como é que há tanta casa de carimbos na Baixa?", interroga-se António Rosado.
"Tem encerrado o pronto-a-vestir de operadores individuais que não se modernizaram. Não aguentam a concorrência de lojas mais poderosas. Todavia, coabitam o comércio tradicional, o centenário e o novo comércio. A Baixa tem 290 mil m2, é um mixcultural muito grande. Já Damião de Góis contava, da Lisboa do séc. XVI, que a Rua do Comércio tinha pessoas de todos os lados, transaccionava-se moeda e produtos de todo o mundo, e ouvia-se línguas de toda a parte do mundo. A Baixa é multicultural."
Mas com ou sem videovigilância? As opiniões dividem-se. O presidente da junta entende que é uma medida necessária e para isso voltou a pedir a sua instalação. "É um mito dizer que a Baixa à noite é um deserto." Já a associação de moradores está dividida a esse respeito. "Pessoalmente, sentir-me-ia mais confortável com policiamento de proximidade e entendo que é preciso ponderar o seu custo e benefício."
S. Nicolau vai ter ainda mais gente. "Isto é irreversível, mas é preciso mais estratégia e reabilitação", frisa António Manuel. Pelos moradores, António Rosado teme que os efeitos da crise penalizem o que estava programado e que já está a ser feito.
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"Nos prédios antigos, só quando as fracções ficarem livres é que os proprietários os reabilitarão, mesmo que disponham de mecanismos de apoio e que por lei tenham que a fazer a cada oito anos. "A câmara não actua como devia, pois já não consegue arcar com tantos custos da intervenção coerciva", observa o autarca. "Há uma inércia de repouso na Baixa e há especulação. Há gente que acha que tem a sorte grande nas mãos, pede acima do que o mercado está a praticar. É uma altura má, que poderá voltar a prejudicar a zona", diz António Rosado."
Neste sentido valeria a pena reflectir sobre a quantidade de espaços em “banho Maria”, prisioneiros especulativamente da ‘Inércia de Repouso’, de grandes companhias como a Tranquilidade-BES … em toda a Zona da Baixa ...

1 comentário:

Anónimo disse...

"Há mais gente, não serão muitas famílias, serão muitos estudantes..."

Mas para numa zona se criar um ambiente de bairro e laços de vizinhança minimamente estáveis e mesmo convivência entre famílias não é com estudantes de passagem que isso vai acontecer...

(Nada contra os estudantes de passagem)