10/11/2006
Em defesa do Museu de Arte Popular
In Público (10/11/2006)
A opinião de
"1.A ministra da Cultura anunciou recentemente o encerramento do Museu de Arte Popular (MAP) e a afectação do seu espaço a um novo museu, da Língua Portuguesa e dos Descobrimentos.
Sobre o novo museu sabemos ainda pouco. A sua inspiração parece ser o Museu da Língua Portuguesa de São Paulo (Brasil). À Língua Portuguesa acrescentam-se, no caso português, os Descobrimentos. A mistura ameaça ser explosiva e, se não houver cuidado, estaremos de novo a falar da língua portuguesa à luz dos lugares-comuns da ideologia "lusófona". Também não sabemos quem irá conceber o projecto nem as parcerias científicas estabelecidas. De mecenas sabe-se pouco. Seguro, seguro é que o novo museu vai custar 2,5 milhões de euros.
Em contrapartida sabemos mais sobre o MAP. Sabemos que o museu foi inaugurado em 1948. O pequeno edifício, bem como a sua museografia, são projecto do arquitecto Jorge Segurado e a decoração (grandes painéis que preenchem a quase totalidade dos alçados) foi assegurada por pintores modernistas que, desde os anos 30, trabalhavam para o SPN (Secretariado de Propaganda Nacional), recuperando o espírito da Exposição do Mundo Português (1940), particularmente dos núcleos das "Aldeias Portuguesas".
Sabemos que o MAP representa o marco mais significativo dos discursos sobre cultura popular portuguesa promovidos pelo Estado Novo de Salazar e António Ferro. Sabemos também que esses discursos se situam na sequência das tematizações da cultura popular iniciadas pelos grandes etnógrafos de finais do século XIX - Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos - e prosseguidas, durante os anos da I República, por intelectuais como Vergílio Correia ou Luís Chaves. Sabemos que foi em alternativa a essa visão da cultura popular que se constituiu a equipa de Jorge Dias ou que pesquisadores vários, situados à esquerda, desenvolveram o seu trabalho.
Sabemos também que o MAP ficou órfão muito cedo: o Estado Novo desinteressou-se dele, a Revolução viveu incomodada com ele, a democracia esqueceu-o. Nos últimos anos ficou também claro que o MAP tem tido à sua frente uma equipa pouco dinâmica, sem verdadeiro projecto museológico. Mas, depois destes tempos difíceis, a conclusão das obras de restauro do museu permitia antecipar uma "nova vida" para o MAP.
2. Ao decidir o seu encerramento, a ministra da Cultura foi de opinião diferente. Fazendo-o, não parece ter levado em conta a importância do MAP e o lugar único que ele ocupa na história do século XX português. Se há museu que, em Portugal, merece ser musealizado é o MAP. O MAP é um testemunho raro de uma visão do mundo que é parte decisiva da história recente de Portugal e da Europa. Toda a investigação contemporânea sobre a "política de espírito" do Estado Novo tem paragem obrigatória no MAP. Ele constituiu o único vestígio - embora indirecto - da Exposição do Mundo Português de 1940. Tudo nele é irrepetível: o edifício, os objectos, o modo como foram coreografados, os murais de Botelho, Tom, Paulo Ferreira ou Manuel Lapa.
3. Por isto tudo, o MAP deve ser musealizado. Não se trata só de pôr o que lá estava e como estava, mas de construir, em cima disso, um percurso crítico, uma reinterpretação, um ponto de vista distanciado.
Em cima dessa musealização, seria possível desenvolver novas valências para o MAP. Uma possibilidade seria abrir o museu - através de uma sala de exposições temporárias - para o universo das culturas populares contemporâneas e dos novos artesanatos urbanos e rurais, feitos de misturas, de hibridez e de reinvenções da tradição (Nestor García Canclini). Mas há outras possibilidades, como seja a de agregar ao MAP um novo pavilhão onde o tema da língua portuguesa pudesse ser trabalhado numa perspectiva ampla, não imperial, com recurso simultâneo à linguística e à antropologia. Em qualquer dos casos, este "recomeço" do MAP deveria ser articulado com o Museu Nacional de Etnologia, sob cuja tutela o "novo" MAP deveria ser colocado (como de resto já esteve previsto, mas nunca chegou a acontecer).
4. Os museus, disse a senhora ministra, "nascem, vivem e morrem". Mas as decisões políticas - sobre cultura ou sobre outros domínios - não são irreversíveis. Esperemos que seja o caso.
Professor de Antropologia, UNL, e Professora de História de Arte, UNL"
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