A desvitalização da Baixa Pombalina
A opinião de Henrique da Gama (Arqº)
In Público (6/11/2006)
"1.Empreender a tarefa de revitalizar a Baixa Pombalina, 250 anos após a decisão de a edificar, constitui um gesto louvável e corajoso se for calibrado com o que as circunstâncias impõem. Independentemente de quaisquer outras considerações, pressupõe uma vontade de sair da ruinosa letargia em que, há decénios, se encontra esta histórica zona de Lisboa. Tal gesto coloca involuntariamente a sua promotora em pose de Pombal, oferece-lhe uma das mais compensadoras volúpias, tão marcada está no imaginário nacional a acção do Marquês a desenhar o perfil e o destino de uma nova capital.
Como nem a posteridade descurou, o então Primeiro-ministro de Portugal encomendou retratos seus debruçado sobre o novo risco, ora rodeado de obedientes colaboradores, ora tendo Lisboa e Tejo como fundo. Foram poucos os que lhe não mimaram o gesto quando se propuseram ocupar o trono da edilidade lisboeta ou, depois de nele instalados, quando tinham por finalidade obter caução para intervenções de mais larga escala.
O documento entregue pela vereadora Maria José Nogueira Pinto ao Presidente da Câmara de Lisboa, em 20 de Setembro passado, assume assim, no plano do imaginário da capital, e no plano simbólico, o mesmo significado que as cartas apoiadas em cochins, tapeçarias e brocados que Van Loo e Vernet inventaram para eternizar Pombal no retrato de 1766, quadro que todos temos presente, mais pela glosa de que tem sido objecto. Começa assim a ascensão da promotora da Revitalização da Baixa-Chiado à tela dos imortalizados reconstrutores da cidade, isto porque, na época em que vivemos, vale mais a imagem do que a obra.
2. A frase da Nota Introdutória ao citado documento, assinada por Maria José Nogueira Pinto, "Esta é uma operação ambiciosa mas exequível" , condensa, da melhor forma, as intenções do plano, o estilo da proposta. Tratar-se-ia de uma operação ambiciosa se não fosse imodesta. O primeiro adjectivo esconde a realidade de que o segundo mais se aproxima. Existe imodéstia diante do corpo físico e histórico pombalino, pouco considerado em todo o documento, a não ser em termos genéricos e longe da sua possível integração no Património Mundial. Existe imodéstia porque sobre esse corpo se projectam esperanças, futuros e mesmo ideologias que estão para além do que deveria ser seu âmbito, pelo menos imediato. Refiro-me a afirmações como: "contribuir relevantemente para a criação do novo "modelo de governação" exigido pela moderna política das cidades" (1- pg.15), "contribuir para uma maior integração de Lisboa no movimento do renascimento das grandes cidades europeias" (1.1 - pg.15), etc,.
Resulta claro que, aspirado destas adiposidades, o texto se tornaria mais elegante e, sobretudo, mais credível. À medida que nele se caminha defrontamo-nos com um corpo obeso, já que se torna difícil identificar "a carne e o osso" da proposta no meio de uma retórica desarmante. Emerge, então, um espectro de voluntarismo nas recomendações e soluções que se propõem, pelo que será por este lado que devem ser tomadas as garantias da sua exequibilidade. O carácter excessivamente normativo, que acaba por invadir todo o documento, traduz-se na aplicação do verbo "dever", quase sempre com sentido vinculativo, mais de 180 vezes nas 163 páginas que conformam a sua totalidade, enquanto a expressão "sugere-se" é aplicada 6 vezes.
3. Seria de esperar que o capítulo "Visão" (1.2) oferecesse um esclarecimento sobre a doutrina que sustenta a operação. Assim se apresenta: "A visão da proposta do Comissariado para a recuperação, reabilitação e revitalização da Baixa-Chiado foi construída com base numa abordagem centrada na sua atractividade ou, mais especificamente, na passagem da compreensão de uma "velha" atractividade perdida para a acção da construção sistemática de uma nova atractividade, desenvolvendo novas forças e competências, para agarrar as novas oportunidades através de uma profunda reorganização global do espaço, do tempo e das actividades, conquistando uma função relevante na afirmação da capital e do país percebida exteriormente, na Europa e no Mundo". (pg -17). O mesmo espírito e o mesmo estilo presidem à explanação da "Estratégia" no ponto (1.3) que se não transcreve por razões óbvias mas cuja leitura se recomenda, já que aí se ilustra o "conjunto restrito de ideias estruturantes e um conceito urbanístico" (1.3. - pg. 9) que subjaz a toda a operação. Em síntese: - "a Baixa-Chiado como grande centro histórico, mas inovador, de vocação comercial e turística (o grande eixo quantitativo)" (pg. 19); - "a Baixa-Chiado como zona privilegiada para os modernos centros de decisão e criatividade públicos e privados (o eixo qualitativo principal) " (pg. 20); - "a Baixa-Chiado como espaço urbano singular, mas privilegiado (o eixo qualitativo complementar) " (pg. 21). Se estes pontos poderão suscitar qualquer perplexidade no significado dos eixos, ficamos inteiramente "esclarecidos" com os primeiros parágrafos do "Conceito Urbanístico": "A revitalização da Baixa-Chiado tem subjacente um conceito urbanístico. Esse conceito para um espaço carregado de história em que as ruas, praças e edifícios já estão construídos, traduz-se em desenvolver uma ideia para a (re)organização do espaço." (pg. 21). Acácio não seria mais brilhante.
Todo o processo de revitalização da Baixa-Chiado assenta em projectos estruturantes cujas intenções são delineadas em 11 parágrafos dos quais, no plano do concreto, se poderá unicamente respigar a definição do prazo da tarefa: "nunca menos que os 25 anos de uma geração". E chegamos finalmente às definições do partido espacial: criação de um espaço qualificado de frente ribeirinha como pólo urbano e turístico; afirmação de um novo Terreiro do Paço, polarizado por funções do Estado Central associadas ao governo electrónico; desenvolvimento de um pólo cultural e de actividades criativas; desenvolvimento de uma operação imobiliária específica nas "ruas transversais" de maior aptidão para a criação de um espaço comercial moderno a céu aberto; construção de um espaço público de excelência; reforço da mobilidade interna e externa, organizando e favorecendo os acessos e a circulação entre os vários pólos no interior da Baixa-Chiado.
4. É neste tronco, intitulado "Conceito Global da Intervenção", que vem enxertar-se a cooperação singular dos comissários e colaboradores técnicos, contribuição essa que está longe de salvar a credibilidade e a coerência do documento, congenitamente comprometidas por um texto programático em que a patente inadequação técnica procura esconder-se numa linguagem vazia, rebuscada e impositiva, tratando de forma pouco decorosa a língua portuguesa, como acima se ilustra. Surpreende que tal iniciativa encontre espaço de afirmação na vida pública portuguesa já que o conteúdo do citado texto só se explica se assentar no pressuposto de que tanto basta para convencer quem o irá ler ou apreciar.
5. Perante tal quadro, resultam mais justificadas, mas continuam inaceitáveis, as insólitas e contraditórias sugestões como a de seccionar a área pombalina com o atravessamento da intitulada "circular das colinas", a de penalizar com um hotel de cinco estrelas um Terreiro do Paço que se quer "polarizado por funções do Estado Central associadas ao governo electrónico", a de criar um idílico passeio pedonal junto ao Tejo em detrimento da circulação vital que, desde sempre, a margem oferece. E o coroamento do projecto: a criação de um centro comercial a céu aberto. Tudo isto mergulhado numa confusão entre cultura e entretenimento. Mas estas questões, pelas muito sérias implicações que lhe estão associadas, obrigam a debate em sede adequada já que estão longe de poderem ser escalpelizadas no espaço de um artigo de jornal, muito embora neste âmbito já tenham aparecido judiciosas apreciações.
6. A Baixa pombalina foi sempre mal aceite pela população lisboeta cuja concepção, com os méritos que são conhecidos, não foi ao encontro do seu modo de vida. Daí o corpo pombalino encontrar-se marcado por uma ocupação arredia ao que a organização espacial pretendeu impor. A natureza desta ocupação não deve ser enjeitada porque constitui não só a marca da sua vida e idade, mas porque encerra um conjunto de sugestões que constituem o apoio fundamental para conferir interioridade e humanidade a uma arquitectura que menosprezou o modo de vida dos habitantes. Aqui reside o grande desafio, que é pois de natureza cultural, com que deve defrontar-se a revitalização da Baixa Pombalina. Seria mais fácil ignorar este registo, esquecer o contexto físico e histórico como documento de vida: partir de um suposto vazio para imposição de uma solução. Pombal actuou segundo este princípio.
Convirá que qualquer proposta razoável para revitalização da Baixa-Chiado proceda no sentido oposto ao que o documento em causa propõe. Deverá partir de dentro para fora, através de uma estratégia de dimensão e aferição progressiva, concedendo um papel de primeiro plano ao factor cultural, com a intenção clara de valorizar a estratificação do tempo e a utilização peculiar que tem marcado o espaço bem como a de moderar a lógica voraz da operação imobiliária que poderá abrigar-se neste plano onde já se admite "a demolição de desqualificados "pastiches" neopombalinos sem qualidade" (pg 112). Senão, corre-se o risco de que os textos arquitectónico e urbanístico da Baixa-Chiado apareçam transformados em 2020 num irremediável equívoco."
06/11/2006
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