29/01/2012

Quem disse que as lojas novas são melhores do que estas?

Por Cláudia Sobral in Público
Todas as semanas a Arqueolojista publica no seu blogue mais um "achado arqueolójico". Esta é uma viagem pelas lojas-avós, as lojas da Lisboa antiga

Tudo começou com Mami Pereira a distribuir castanhas assadas na Baixa de Lisboa. O senhor David, sócio de uma loja de pijamas e lingerieda Praça da Figueira, disse-lhe que passasse por lá, que lhe oferecia um copo de água-pé para ajudar a empurrar as castanhas. Ela lá foi. Mal sabia que a sua vida nunca mais seria a mesma depois daquela conversa. Hoje diz que foi aí que se apaixonou pelas "lojas antigas" e teve vontade de fazer "alguma coisa".
Por isso, a jornalista e fotógrafa agora é também Mami, a arqueolojista - que é o mesmo que dizer "pessoa apaixonada por lojas antigas que se dedica à caça, descoberta e catalogação dos achados do comércio tradicional", como a própria faz questão de explicar no blogue A Arqueolojista, onde conta as histórias destes estabelecimentos que têm vindo a desaparecer.
Este projecto "não é lá qualquer coisa", esclarece Mami ao "freguês" que tropece na página do Facebook: é um blogue "dedicado às lojas avós, também chamadas antigas" e aos seus "reclames vintage, ao bric-a-brac, aos fregueses, às etiquetas do tempo da monarquia, aos sorrisos de quem está atrás do balcão, aos galhardetes, ao granel, ao fiado". O comércio tradicional pode já não ser o que era, mas as "lojas com barbas" ainda existem. E isso vê-se pelos achados que a arqueolojista colecciona na sua página. Por uma tarde, Mami faz de guia por algumas das suas "descobertas arqueolójicas", por aquelas lojas que ainda têm tudo atrás dos balcões. "Antigamente estava tudo atrás do balcão", diz. "Hoje em dia não, porque o que as pessoas menos querem é meter conversa com quem está na loja."

Até os sapos fumavam

Mas há as lojas que resistem à mudança e é dessas que a arqueolojista anda à procura. Como a Tabacaria Mónaco, no Rossio. Desde a remodelação que se fez em 1894 pela mão de artistas portugueses como Rafael Bordallo Pinheiro e António Ramalho, pouco mudou, resume Carlos Oliveira, o sócio maioritário.
Tirou-se a cabine telefónica, "uma das primeiras cabines públicas de Lisboa" e a bilha em barro com a água de Caneças, "onde as pessoas vinham beber de um copinho" - deixou de fazer sentido com o avançar dos tempos. Por toda a galeria, continuam os painéis de Bordallo Pinheiro, com os sapos que fumam, lêem jornais e bebem água de Caneças, e, no tecto o fresco de António Ramalho, com as famosas andorinhas.
"Às vezes custa falar disto", começa. Há 41 anos entrava por aquela porta como marçano, para fazer o que fosse preciso. E assim ficou, até acabar por tomar conta do negócio, deixado em testamento pela patroa. Na Mónaco, uma publicação de número único editada a propósito da inauguração da tabacaria depois da remodelação, o escritor Fialho de Almeida chamou-lhe "capela de S. João Baptista dos charutos". "Eu já lhe mostro o jornal", insiste.
"Naquela altura tínhamos uma saída para a rua de trás, como o Nicola", paredes meias com a tabacaria. "E antes de a Bertrand importar revistas a Mónaco já tinha revistas inglesas", frisa Carlos Oliveira. "A Baixa era muito melhor antes de aparecerem os centros comerciais", lamenta Tomé Repas, que trabalha na Mónaco e trabalhou noutras tabacarias que entretanto desapareceram para dar lugar a lojas novas.
Sobre a Mónaco, Mami já escreveu, mas muitas das lojas que já visitou e fotografou não estão ainda no blogue, que todas as semanas é actualizado, mas com apenas uma ou duas "descobertas arqueolójicas", para "as pessoas terem tempo de passar por lá". A mais recente é o Franco Gravador, na Rua da Vitória, uma loja de "plaquinhas e emblemas, sinetes para lacre, medalhas e todo o tipo de carimbos".

A arte de "bem servir"

A loja onde começou a - ainda curta - história da arqueolojista é a Alberto Ferreira dos Santos, Lda. e Higino David, que se cruzou com Mami enquanto oferecia castanhas, numa acção de promoção de uma empresa, é um dos dois proprietários. A loja é a sua vida. E também a de Fernando Laranjeira, o seu sócio. "Temos gosto na vida que temos", sublinha o segundo, que ali começou a trabalhar aos 14 anos. "Era a esta loja, hoje centenária, que chegavam muitos clientes da província, não só à procura da última moda mas sobretudo das últimas notícias da capital, locais para trabalhar ou, simplesmente, novas amizades", lê-se no texto da arqueolojista sobre a Alberto Ferreira dos Santos.
Hoje, enumera, compram-se aqui "um grande sortido de malhas quentinhas", pijamas e camisolas interiores, "combinações vaidosas", roupa para bebé, "lenços de cache-nez, aventais para o serviço, xailes-de-avó", cuecas e culotes (que, conta o senhor David, se vendia muito para a apanha do arroz) e ainda barretes de campino.
A boa disposição dos dois amigos tráz-lhe à memória um sketchdos Malucos do Riso: "Servir bem, bem servir, dá saúde e faz sorrir." Não é preciso explicar porquê, basta entrar e ouvi-los a falar, sorriso sempre rasgado, beijinhos a pretexto de tudo. "Eles eram miúdos que vinham para cá da província, novinhos, que varriam o chão, faziam recados, tudo, e às vezes acabavam por viver também com a família dos patrões", conta Mami. "Depois eles acabam por lhes deixar isto."
Quanto às castanhas que a fizeram descobrir esta loja, eram da "tia Lila", uma das vendedoras mais conhecidas por estas bandas, que também tem um espaço na página da arqueolojista, onde se encontram "sítios chiques que já vestiram janotas e madames", também "tascas para grandes patuscadas, tabernas para a boa da pândega", ou ainda "românticas floristas, cheirosas drogarias, curiosas tabacarias, luvarias, retrosarias, livrarias, leitarias e barbearias".

Ervilhas telefone

Diferente de tudo isto ainda é a Soares & Rebelo - Hortelão, a loja de sementes da Rua do Amparo. Quase só sementes, explica Vítor Folgado ("só de nome", diz ele). E sementes de tudo - até daquilo que muitos nunca terão imaginado que existe. Um exemplo, mesmo junto à porta: a ervilha maravilha, a ervilha torta, a ervilha telefone. Ou uma prateleira que quase atravessa a loja de ponta a ponta só para sementes de diferentes variedades de alface.
Não longe dali, na Rua das Portas de Santo Antão, fica a Ferragens Guedes. Dá ideia de ser mais uma loja de fechaduras e puxadores. Mas só até Fernando Silva chegar e, sem serem precisas perguntas, começa a contar: "A história da loja... é uma loja que abriu em 1922." E depois de elencar - quase de cor - os nomes de todos os sócios que saíram e entraram ao longo de 90 anos, solta um desabafo, que resume a história do fim de muitas destas lojas: "Entretanto ficou Guedes só. O último. O filho dele não irá seguir, está noutra área diferente, mas vamos lá ver." "Eu que estou aqui há 43 anos é que tenho sido a mola disto. Faço tudo, tudo, tudo."
Vai andando por todas as caves e sub-caves, que são armazéns, também pela oficina, com um certo orgulho. São salas de caixinhas e embrulhinhos até ao tecto. Fernando mostra o puxador das portas laterais do Teatro Nacional D. Maria II, outro que fizeram para o Éden, ainda mais um do Colégio Militar. Mami vai tirando mais fotografias. Aos pormenores. Ela gosta dos pormenores. Sobre esta loja ainda não escreveu, mas já avisou no Facebook que "daqui a uns dias" vai revelar onde se compram "as famosas mãozinhas", que noutros tempos faziam a vez das campainhas.
Sorte diferente destas lojas têm tido outras. É o caso da famosíssima alfaiataria Picadilly, da Rua Garrett, no Chiado, que deu lugar a uma casa de sandes. "Estavam a ter imensa pressão para sair dali", lamenta Mami. Os clientes passaram a ser atendidos num atelier no primeiro andar de um edifício próximo. "Estas lojas é que chamam turistas, estas lojas é que tem interesse manter e o que estamos a fazer é um bocado o contrário. Daqui a uns anos as pessoas vão ter é saudades destas lojinhas."
A arqueolojista tenta remar contra a maré. Passa o tempo à procura de lojas, em conversas com donos e empregados, máquina fotográfica e caneta atrás. E já tem várias ideias - mais ambiciosas - em mente. Um dia, quando tiver reunido mais lojas, ainda haverá roteiros arqueolójicos em Lisboa. Para já, os "achados" vão sendo coleccionados no blogue www.arqueolojista.com.

2 comentários:

Anónimo disse...

estes "achados" tornam-se perdidos se ninguém compra lá. esta idolatração da imagem não leva a lado nenhum e o caso da ourivesaria e do livraria que vão fechar brevemente são disso exemplos. mas o que se quer é bonecos para encher facebooks e carregar "gosto", certo?....

Xico205 disse...

Quem acha que as novas lojas são melhores que as velhas?

Quem haveria de ser...os clientes que compram nas novas e não compram nas velhas. Tudo tem o seu tempo, e do passado vivem os museus.

A maioria das lojas que aqui falam fazem tanta falta a Lisboa que eu toda a vida vivi em Lisboa e nem sabia que existiam a maior parte delas.