Havia um rapaz de 9 anos, o Jorge. Eu estava a fazer, na sua escola, a minha primeira obra, e recebi dele a lição de Arquitectura que mais me marcou.
O Jorge estava na terceira classe, ouvi dizer que era bom aluno. Tinha amigos na turma, e até reparei que havia uma rapariga a “rondá-lo”. Só um detalhe impunha limites àquela sede de viver – a cadeira de rodas.
Como a cadeira não entrava no refeitório, o Jorge almoçava à parte. E como nos intervalos os degraus não deixavam o Jorge circular pelo recreio, ele tinha de permanecer num alpendre, junto à porta, a comer com os olhos a brincadeira dos outros.
Só isto já dá que pensar, não é? De que serve soletrar “todos diferentes, todos iguais”, quando o próprio edifício se encarrega de ensinar aos alunos… o contrário?
O nosso projecto de adaptação criava um percurso acessível a ligar a entrada no recinto a pelo menos um espaço de cada tipo: sala de aula, casa de banho, refeitório, e por aí adiante – incluindo as diferentes zonas do recreio.
Fiéis à filosofia do projecto, lá desenhámos uma rampa a ligar o alpendre (onde o Jorge secava nos intervalos) ao campo de futebol. E a lição vem daí.
É que a obra avançava, devorando sem piedade o orçamento. E quando chegou a hora difícil de cortar nos trabalhos previstos, aquela rampa estava mesmo a jeito. Afinal, para que servia? “Tem de haver bom senso”, disseram-me, “o miúdo alguma vez vai jogar à bola?!”
Eu teimei – se a rampa estava no projecto, era para fazer. Confesso, hoje, que foi mais por teimosia do que por consciência. Talvez aquela teimosia de arquitecto novato que não quer dar parte de fraco…
Quando o tosco da rampa ficou pronto, fui à obra. Às escondidas, alguém tinha desviado o tapume. Era hora do recreio, e lá em baixo estava o Jorge a jogar à bola.
Jogava sentado na sua cadeira (claro), mas lado a lado com os colegas, umas vezes à defesa, outras ao ataque. Passei o intervalo a olhar para ele, e senti pela primeira vez o poder que a arquitectura tem na vida das pessoas, e a dimensão da nossa responsabilidade enquanto arquitectos.
E aprendi, então, três princípios básicos.
Primeiro, que uma pessoa pode querer fazer muitas coisas, mas que só fará as que o meio edificado lhe deixar fazer. Nesse sentido, os espaços que desenhamos tornam-se sempre uma fonte de oportunidades ou de limitações.
Segundo, que a nossa função como profissionais é assegurar a igualdade de oportunidades. Não nos compete escolher quem vai (ou não) ter direito à plena utilização do que projectamos. A Lei já tomou essa decisão – e escolheu todos (em democracia, pelo menos).
É costume, neste ponto, lembrar o senso comum. Ora, essa foi justamente a terceira coisa que aprendi. Que é preciso ter cuidado quando falamos de “senso comum”. Ele não é “comum” por ser “bom”, mas porque resulta do hábito e, às vezes, do preconceito. Nem sempre é bom conselheiro, portanto.
Aliás, os grandes avanços civilizacionais dos últimos 150 anos foram todos… contra o senso comum da época. Se assim não fosse, as mulheres ainda não sabiam ler, continuavam obrigadas à vida doméstica e nem podiam votar. Já para não falar nas questões da raça, da idade, da orientação sexual…
Esse mesmo senso comum está em causa, agora, com a acessibilidade. Contactando com centenas de arquitectos por todo o País, verifico que a mudança está a fazer o seu caminho – e são mais os motivados, que os resistentes.
Evoluir não é fácil. Mas é fundamental. Para que possamos dizer, um dia, que a civilização deu mais um passo pela mão dos arquitectos.
O Jorge estava na terceira classe, ouvi dizer que era bom aluno. Tinha amigos na turma, e até reparei que havia uma rapariga a “rondá-lo”. Só um detalhe impunha limites àquela sede de viver – a cadeira de rodas.
Como a cadeira não entrava no refeitório, o Jorge almoçava à parte. E como nos intervalos os degraus não deixavam o Jorge circular pelo recreio, ele tinha de permanecer num alpendre, junto à porta, a comer com os olhos a brincadeira dos outros.
Só isto já dá que pensar, não é? De que serve soletrar “todos diferentes, todos iguais”, quando o próprio edifício se encarrega de ensinar aos alunos… o contrário?
O nosso projecto de adaptação criava um percurso acessível a ligar a entrada no recinto a pelo menos um espaço de cada tipo: sala de aula, casa de banho, refeitório, e por aí adiante – incluindo as diferentes zonas do recreio.
Fiéis à filosofia do projecto, lá desenhámos uma rampa a ligar o alpendre (onde o Jorge secava nos intervalos) ao campo de futebol. E a lição vem daí.
É que a obra avançava, devorando sem piedade o orçamento. E quando chegou a hora difícil de cortar nos trabalhos previstos, aquela rampa estava mesmo a jeito. Afinal, para que servia? “Tem de haver bom senso”, disseram-me, “o miúdo alguma vez vai jogar à bola?!”
Eu teimei – se a rampa estava no projecto, era para fazer. Confesso, hoje, que foi mais por teimosia do que por consciência. Talvez aquela teimosia de arquitecto novato que não quer dar parte de fraco…
Quando o tosco da rampa ficou pronto, fui à obra. Às escondidas, alguém tinha desviado o tapume. Era hora do recreio, e lá em baixo estava o Jorge a jogar à bola.
Jogava sentado na sua cadeira (claro), mas lado a lado com os colegas, umas vezes à defesa, outras ao ataque. Passei o intervalo a olhar para ele, e senti pela primeira vez o poder que a arquitectura tem na vida das pessoas, e a dimensão da nossa responsabilidade enquanto arquitectos.
E aprendi, então, três princípios básicos.
Primeiro, que uma pessoa pode querer fazer muitas coisas, mas que só fará as que o meio edificado lhe deixar fazer. Nesse sentido, os espaços que desenhamos tornam-se sempre uma fonte de oportunidades ou de limitações.
Segundo, que a nossa função como profissionais é assegurar a igualdade de oportunidades. Não nos compete escolher quem vai (ou não) ter direito à plena utilização do que projectamos. A Lei já tomou essa decisão – e escolheu todos (em democracia, pelo menos).
É costume, neste ponto, lembrar o senso comum. Ora, essa foi justamente a terceira coisa que aprendi. Que é preciso ter cuidado quando falamos de “senso comum”. Ele não é “comum” por ser “bom”, mas porque resulta do hábito e, às vezes, do preconceito. Nem sempre é bom conselheiro, portanto.
Aliás, os grandes avanços civilizacionais dos últimos 150 anos foram todos… contra o senso comum da época. Se assim não fosse, as mulheres ainda não sabiam ler, continuavam obrigadas à vida doméstica e nem podiam votar. Já para não falar nas questões da raça, da idade, da orientação sexual…
Esse mesmo senso comum está em causa, agora, com a acessibilidade. Contactando com centenas de arquitectos por todo o País, verifico que a mudança está a fazer o seu caminho – e são mais os motivados, que os resistentes.
Evoluir não é fácil. Mas é fundamental. Para que possamos dizer, um dia, que a civilização deu mais um passo pela mão dos arquitectos.
[publicado na revista "Cubo", n.º 15, Outubro 2008]
3 comentários:
Mas em termos de urbanismo (e civismo) o Jorge só está presente nas mentes de poucos. Lisboa deve ser um pesadelo absoluto para deficientes. E a solução a esses problemas...pertencia já ao séc. passado. O egoísmo (individualismo retrógrado) continua a ser a batuta da nossa sociedade. Até quando?
Não fazer espaços preparados para o Jorge e centenas de milhares de cidadãos é agora ilegal e devia haver um prazo máximo para as Câmaras adaptarem os espaços que possam ser modificados sem prejuízo para a sua identidade (caso exclusivo de zonas\edifícios classificados).
Quem é que nunca teve uma perna partida, passeou um carrinho de bébé ou não conta um dia ser idoso?
Diz respeito a todos e talvez seja uma modo de combater a colonização automóvel.
Pedro, bem-vindo.
Aparece mais.
É bom ler-te...
Abraço.
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