15/05/2018

"A (re)visão da Carta Municipal do Património" (Paulo Ferrero no Público de 15 de Maio de 2018)

Paulo Ferrero

Espera-se que não estejamos perante uma actualização que vise única e exclusivamente eliminar de vez o que é empecilho à “reabilitação urbana” vigente nos últimos dez anos.

A notícia passou quase despercebida: o executivo da Câmara Municipal de Lisboa (CML) aprovou em reunião de 31 de Janeiro deste ano (e já lá vão quatro meses...) a constituição do “Conselho Científico como Estrutura Consultiva com vista à revisão da Carta Municipal do Património Edificado e Paisagístico” (Proposta n.º 20/2018). E nomeou sua presidente a arquitecta Ana Tostões.

É isso (leia-se, a revisão da carta municipal) bom, mau? Dito por outras palavras: é motivo de preocupação ou de aclamação? Como tudo o mais, depende, e no caso depende logo de uma coisa que à partida se desconhece: o motivo.

E isto porque o mais natural seria que tal revisão ocorresse daqui por dois-três anos, uma vez que o Plano Director Municipal (PDM) em vigor é de 2012 e será revisto em... 2022, convenhamos que ser preciso um mandato inteiro para se actualizar uma carta do património, por mais molengas que haja, é obra, até porque... não há muito para actualizar – mais do que prédios novos a merecerem entrar na Carta do Património, o que há são prédios para sair da lista, por a CML não ter assegurado, como devia, a sua permanência, ou seja, não cumpriu ela própria com o estipulado no PDM ao permitir alterações e demolições onde não deveria permitir.

Estranha alusão a do vereador Manuel Salgado aos "4000 imóveis" da actual Carta Municipal do Património (replicados praticamente na íntegra do Inventário Municipal do PDM de 1994-2012), como sendo demasiados...

Ao que parece, esta revisão cirúrgica ao PDM resultará dos termos do acordo pós-eleitoral celebrado entre o Partido Socialista e o Bloco de Esquerda, e visará estabelecer uma espécie de “Prédios com História”, ou seja, reformular e estruturar internamente os procedimentos de definição, avaliação, registo e caracterização dos imóveis de interesse municipal em termos de PDM (não confundir com a classificação de Imóvel de Interesse Municipal).

Percebe-se a intenção, que é boa, mas de boas intenções está... além de que está a passar aos serviços da CML um enorme certificado de ignorância, pois isso quer dizer que até agora não houve a fixação de “critérios de integração dos imóveis nesta carta, definir graus de salvaguarda e dividir os bens por tipologias”, ou seja, os tais 4000 imóveis foram classificados à Lagardére ao longo de todos estes anos.

E isso, além de falso, é de uma profunda injustiça para com o elevado profissionalismo dos quadros da CML que meteram em ombros a tal tarefa desde 1994 (e antes), e que têm sabido resistir (até onde podem) às pressões de sentido contrário, umas vezes incólumes, outras, muitas, sofrendo na pele os inevitáveis efeitos colaterais de quem tenta resistir à pressão do imobiliário.

Ou seja, espera-se que não estejamos perante uma actualização que vise única e exclusivamente eliminar de vez o que é empecilho à “reabilitação urbana” vigente nos últimos dez anos, derrubando, finalmente, o que resta de património erigido em finais do século XIX, princípios do XX, ou seja, tudo quanto seja prédio, moradia, palacete feito de tabique, estuque, materiais nobres, azulejo decorativo, pé-direito alto, logradouro, enfim, coisas d’outro tempo – e ainda há muita coisa a despachar por Campo de Ourique, Estrela, Avenidas Novas, Picoas, Arroios, Graça... –, e substituí-lo por obra “modernaça” (não confundir com o modernista, moderno ou mesmo pós-moderno da Docomomo), mais premiada, menos premiada.

Por outro lado, é também estranho que a responsabilidade de todo este assunto recaia no Departamento de Planeamento, afecto ao Urbanismo, e não ao Pelouro da Cultura, que é disso que se trata. Avante.

Uma coisa é certa: dada a histórica, e inquestionável, postura pró-património (sobretudo no que toca ao Modernismo, mas não só), “à prova de bala”, da presidente indigitada para o referido conselho científico (ao que parece por sugestão do vereador do Urbanismo), não parece haver perigo de qualquer presente envenenado.

Impõe-se a pergunta: para uma actualização do inventário municipal, não bastaria à CML colocar na rua uma equipa de estagiários, de esferográfica em punho, e validar a check-list com os tais 4000 imóveis “protegidos” (e não, não vale “esquecerem-se” como se esqueceram os que deviam ter elencado no Inventário de 1994 e não elencaram o n.º 42 da Av. Duque de Loulé ou o n.º 69 da Rua da Lapa...), riscando da Carta de 2012 todos os que já não existem?

E chegámos ao cerne da questão: a Carta Municipal do Património (e antes dela o Inventário Municipal) não é nem nunca foi cumprida. Tivesse ela sido cumprida e não teríamos visto desaparecer nos últimos 25 anos tantos e tantos prédios, quarteirões inteiros, inclusive.

Outra pergunta: quantas vezes foram acatados os pareceres da Estrutura Consultiva do PDM?

Se a CML acatasse o que esta propôs que se salvaguardasse ao longo de todos estes anos, muita barbaridade, muitos maus exemplos (e piores práticas) teriam sido impedidos, como o estropiamento dos n.ºs 25 e 37 da Avenida da República, ou o desaparecimento dos antigos equipamentos industriais da Boavista e de Alcântara, só para referir dois exemplos.

Ou seja, por que razão a CML não dá a devida relevância aos seus próprios serviços do património, acatando os seus pareceres quando estes são contrários aos do urbanismo (em regra assentes na premissa: que se dane o património, antes que se amplie ou construa de raiz, que a registadora das taxas agradece)?

Mais, a necessidade de um conselho científico pressupõe o assumir da irrelevância da estrutura consultiva. Ou seja, doravante, quem vai fazer o quê, vai mandar em quem? Em quem se acredita?

Finalmente, a avaliação estrutural dos edifícios, que, na maioria das vezes, dita a conservação ou a demolição de um edifício. Por que insiste a CML em recorrer a avaliações externas? Não há engenheiros de estruturas na CML, livres de interesses? Ganham pouco e por isso vão saindo da CML? Pague-se-lhes mais. A cidade agradece.

E porque não obriga a CML à apresentação de dois pareceres pelo promotor? Quantos prédios não foram abatidos com base em avaliações no mínimo discutíveis? Casos há, e não são poucos, em que foram justificadas demolições de edifícios em tudo menos em estado de ruína, isto é, demolições que violam grosseiramente o articulado do PDM no que toca ao exigível a edifícios registados na Carta do Património.

Teme-se, portanto, que toda esta súbita preocupação visa apenas transformar a Carta Municipal do Património numa “planta georreferenciada” à escala da cidade, ou seja, num plano de urbanização e de pormenor geral, onde o que interessará é organizar, sistematizar, e garantir ab initio, uma imensa matriz com as “condições de elegibilidade” em termos de pedidos de informação prévia e licenciamentos sobre edifícios constantes daquela Carta.

Quando a esmola é grande o santo desconfia. Quem avisa amigo é. Mais vale prevenir que remediar

Tem a palavra a CML.

https://www.publico.pt/2018/05/15/local/opiniao/a-revisao-da-carta-municipal-do-patrimonio-1829982

2 comentários:

J A disse...

Sim....se cartas, PDM, pareceres & tal foram cilindrados durante décadas, talvez não seja de esperar o Pai Natal ao virar da esquina. Se bem que esta nomeação seria bem estranha para seguir a mesma rota. A ver vamos....

Anónimo disse...

Quando e que alguem se lembra que proteger o patrimonio tambem deveria ser fazer pressao na camara de Lisboa para actuar sobre os tags!
Estive no passado fim de semana la e e um horror a quantidade de tags espalhados por toda a zona historica!

So mesmo em Portugal! Da um ar de desleixo que mete do!

Alguem que faca uma peticao que eu assino ja!!!