In Público (8/7/2006)
"O azulejo aplicado na fachada da Igreja da Encarnação não resolvia tecnicamente o revestimento da parede, não constituía mais-valia estética para a construção arquitectónica, em muito pouco qualificava a envolvência urbana e implicava constantes e onerosos encargos de manutenção. Qualquer decisão implica sempre escolhas, por vezes difíceis e nunca consensuais
Foram publicados na secção Local do jornal PÚBLICO, nos dias 22 e 26 de Junho e no dia 6 de Julho passados, quatro artigos sobre o levantamento dos azulejos da fachada lateral da Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, na Rua do Alecrim, em Lisboa. Citado nestes textos o parecer que emiti a pedido do pároco da igreja, cónego João Seabra, e evocada a minha responsabilidade na decisão pelo cargo que exerço, o de director do Museu Nacional do Azulejo, venho agora, regressado de férias e com conhecimento das matérias produzidas a propósito, esclarecer a minha posição neste dramatizado processo mediático.
Seria grave, se não mesmo absurdo, se desconhecesse a modéstia e a importância do azulejo industrial usado no revestimento de fachadas, veículo de intervenção estética urbana, registo do nosso espírito prático e inteligência sensível, referência maior da nossa cultura artística e essencial criação de atmosferas nas cidades portuguesas, num ciclo histórico traçado entre meados do século XIX e as primeiras décadas do século XX.
Com efeito, essa criação resulta, em grande parte, da capacidade que as texturas, as cores e os vidrados do azulejo têm para desmaterializar os volumes arquitectónicos, sendo, em muitos edifícios urbanos deste período, a única mais-valia estética da arquitectura, facto que aconselha sempre, por princípio, a manutenção dos revestimentos de azulejos nas fachadas. Os azulejos aplicados na fachada da Rua do Alecrim da Igreja da Encarnação correspondiam a este paradigma e, perguntado sobre o seu valor patrimonial, fiz, como tecnicamente se faz, a análise do objecto sobre o qual me era pedido parecer, a descrição material, estética e histórica do revestimento e, estou certo, fui rigoroso.
Assinalei a pouca qualidade desta aplicação cerâmica, pela indigência dos azulejos escolhidos e pelo modo de aplicação, podendo falar-se aqui de revestimento no seu sentido técnico mais absoluto, o de mera protecção física de um pano monumental de parede. Assinalei o contexto histórico desta aplicação e o evidente desacerto estético entre o revestimento cerâmico e o objecto arquitectónico, intervenção de gosto pequeno burguês das primeiras décadas do século XX sobre um edifício setecentista de erudita traça arquitectónica. Existem bons exemplos desta convivência anacrónica do revestimento de azulejo com um edifício anterior como, por exemplo, a Casa do Raio em Braga, com a poderosa cantaria rocaille em notável diálogo com um correntio (e nem por isso menos belo) azulejo industrial do século XIX, obra de referência para qualquer estudo sobre a história do gosto artístico, criando-se, aí sim, inovadores e qualificados objectos de cultura. Tal não foi o caso da Igreja da Encarnação, desvirtuada com o paupérrimo revestimento de azulejo industrial que ocultou a composição austera e desornamentada da sua arquitectura, estruturada por cornijas, cunhais, platibandas, janelões e óculos, elementos que desapareciam na mesquinhez de escala do padrão e na desoladora manta de retalhos em que o revestimento se transformou após restauros sucessivos.
A capacidade reflectora do azulejo é certamente valor essencial na cerâmica aplicada à arquitectura e potencia com imaginação a metamorfose dos espaços urbanos em Portugal. Contudo, ao ter de se ponderar, por um lado, o efeito reflector deste revestimento, e, por outro, o apagamento da estrutura arquitectónica setecentista por um material de má qualidade técnica e estética, o seu deplorável e irreversível estado de conservação, com constantes destacamentos de azulejos das paredes, logo inscrevendo uma definitiva imagem de degradação numa das zonas mais nobres da capital, não creio que este fosse valor decisivo para a manutenção do revestimento.
É dito que os edifícios do arquitecto Siza Vieira, construídos mais abaixo, teriam tomado como mote esta fachada. Os azulejos aí aplicados inscrevem-se num paradigma bem diferente da sensualidade muito vibrátil do azulejo de tradição portuguesa, ao evitar a exuberância material própria da cerâmica, optando-se por um cinzento de expressão fria e um vidrado tendencialmente mate, não reflector. Aí é mais evidente o grafismo rigoroso da métrica do quadrado do que a intenção de gerar uma envolvência de cor e luz que nos é tão cara, qualidade festiva que, de facto, também esteve sempre ausente do revestimento cerâmico do alçado da Igreja da Encarnação, embora por outras razões.
Qualquer decisão implica sempre escolhas, por vezes difíceis e nunca consensuais. As entidades competentes decidiram pelo levantamento de um revestimento de azulejo de má qualidade e degradado que tapava o desenho qualificado de uma das mais carismáticas igrejas de Lisboa, restituindo-nos a evidência da construção setecentista, cuja robustez estrutural se fragiliza com o revestimento cerâmico, vocacionada como era para o diálogo austero entre a cantaria e a alvenaria pintada.
Não tendo emitido, em nenhum momento, qualquer opinião sobre a remoção dos azulejos, a responsabilidade do cargo que exerço não me obriga a defender de modo cego e incondicional o azulejo, porque, como em tudo, pode com ele fazer-se boa ou má obra.
O azulejo aplicado na fachada da Igreja da Encarnação não resolvia tecnicamente o revestimento da parede, não constituía mais-valia estética para a construção arquitectónica, em muito pouco qualificava a envolvência urbana e implicava constantes e onerosos encargos de manutenção.
Foi para mim surpreendente perceber que o azulejo como património integrado suscita movimentos apaixonados na opinião pública mas lamento que esta se manifeste de modo sensacionalista, apenas a propósito de uma realização de qualidade e gosto equívoco e degradada, insuportável devido aos custos elevados de manutenção e riscos físicos para os cidadãos, defendido exclusivamente, de modo poético mas pouco realista, pelo seu brilho. Em simultâneo, reparo que um número assustador de revestimentos é demolido nos bairros tradicionais de Lisboa, fazendo desaparecer definitivamente obras anónimas e essenciais mas que não despertam qualquer reacção pública, mesmo tratando-se de um património fundamental e, com frequência, o único em muitos desses lugares. Até em zonas classificadas como a da Baixa pombalina são impunemente levantados os conjuntos figurativos de azulejaria pombalina e D. Maria, existentes nos interiores dos prédios, e ninguém alerta para suster a sangria ou contribuir para promover a consciência cívica dos proprietários dos imóveis, dos construtores civis, dos munícipes em geral e dos poderes reguladores e fiscalizadores de obras, chamando à atenção para a importância actual e futura destes pequenos, dispersos e fundamentais patrimónios nacionais. Lembro ainda, para falar de um exemplo bem próximo da Igreja da Encarnação, a singular fachada da antiga Livraria Diário de Notícias, projecto do arquitecto Conceição Silva com notável revestimento em azulejo de Norberto Araújo, assinado e datado de 1954, obra de referência do fulgor moderno que percorreu os estabelecimentos comerciais da Baixa nas décadas de 1950 e 1960, e que foi barbaramente demolida em 1999 perante a desresponsabilização absoluta do dono de obra e de quem licenciou o projecto. Também não apareceu nenhum artigo sobre os grafitti que assolam agora os painéis históricos da Avenida Infante Santo, parte da nossa melhor arquitectura de 1950, nem sobre o vandalismo e roubo sistemático das fachadas, como sucede com os azulejos relevados do prédio da Rua do Paraíso, anónima criação do nosso romantismo, em colapso iminente. De outro modo, vemos construir fachadas de qualidade degradante nos melhores espaços da cidade, como a fachada neo-rocaille bem próxima da Igreja da Encarnação e à beira da de S. Roque, "monumental casa de banho" como alguém lhe chamou, sem que se promova qualquer movimento de opinião. Enquanto nos levam a concentrar-nos nesta falsa questão patrimonial, numerosas delapidações vão acontecendo, anónimas, silenciosas e sem notícia, perante a passividade ditada pela generalizada falta de educação cívica sobre o nosso efectivo património.
Paulo Henriques
Director do Museu Nacional do Azulejo"
O director do MNA tem razão nos variados exemplos que enumera (a que juntaria os da falecida casa de Almeida Garrett, em que também apareceram logo alguns detractores do valor dos mesmos, a fim de justificarem a sua destruição pelo proprietário), mas não tem razão quando diz que não foram escritos artigos sobre os azulejos vandalizados da Av. Infante Santo, Livraria DN, etc., porque o foram; basta consultar os arquivos e/ou a Net.
PF
10/07/2006
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1 comentário:
Caros Concidadãos
Sobre o descaminho de azulejos e elementos arquitectónicos de edifícios históricos, recomenda-se a consulta ao site americano da actividade comercial do, até á pouco tempo, presidente da Associação Portuguesa de Antiquários, onde se pode observar um inacreditável catálogo de peças desses géneros, actualmente á venda nos E.U.A.
http://www.solarantiquetiles.com/
Não obstante não duvidar da licitude desta actividade, que não ponho em causa, é pertinente interrogarmo-nos sobre quantas destas exportações definitivas de património histórico-artístico com mais de cem anos, é que foram solicitadas, e autorizadas pelos serviços competentes do Ministério da Cultura ?
Antiquário que até presta serviços de consutadoria á PJ no programa "SOS Azulejo" (?).
http://mais.uol.com.br/view/7945qmbpogar/tradicionais-azulejos-de-lisboa-sao-cada-vez-mais-roubados-0402306ECC916326?types=A&
Peças que há cerca de duas décadas são sistematicamente furtadas em Portugal por catálogo e por encomenda, por elementos de uma organização criminosa internacional, constituida por bandos de gatunos operacionais, de etnia cigana, e seus associados italianos e dos Países Baixos, que os organizam e distribuiem a mercadoria ilícita pelo mercado mundial. Indivíduos sobejamente conhecidos das autoridades judiciais nacionais, e internacionais, e que estranhamente não são eficazmente combatidos. Sendo classificados de um "grupo de ladrões ainda não identificado" !
http://sic.aeiou.pt/online/video/informacao/Reportagem+Especial/2009/1/sospatrimonio.htm
Faz-se entretanto pesquisa na net, designadamente na Ebay, para alegadamente cumprir e explicar o desempenho de funções, onde se detectam azulejos a vulso, produto da pequena delinquência, e "esquece-se" o impune "comércio a grosso" das obras de arte valiosas.
http://video.msn.com/video.aspx?mkt=pt-br&vid=6f951fda-f648-4302-a426-462c531a269d
http://mais.uol.com.br/view/1575mnadmj5c/roubo-de-azulejos-em-portugal-ameaca-patrimonio-historico-040262DCC16366?types=A&
Com consideração.
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