In Público (19/1/2008)
Inês Boaventura
«A APL tem sido "um garante de que não há abusos de construção" na frente ribeirinha
de Lisboa e foi o Governo que impôs projectos polémicos, diz o presidente da comunidade
A Comunidade Portuária de Lisboa acredita que a transferência para o domínio municipal de várias áreas da frente ribeirinha do Tejo pode comprometer o futuro do Porto de Lisboa e abre caminho à especulação imobiliária, rejeitando ainda que essa transferência seja feita a custo zero.
O presidente da comunidade portuária, João Carvalho, reagia assim à aprovação pelo Governo do decreto-lei que permite a passagem para as câmaras municipais de "áreas sem utilização portuária reconhecida, actual ou futura", com o objectivo anunciado de promover a sua "integração no tecido urbano envolvente" e "tendo em vista a prossecução de objectivos de qualificação urbana".
Em declarações ao PÚBLICO, João Carvalho afirmou que essa transferência, "como é evidente, só pode ser para especulação imobiliária", até porque só assim as autarquias poderão arrecadar receitas para suportar as despesas inerentes à assunção da propriedade das novas áreas. "Se não é para construir, para que é que as câmaras as querem, é só para terem despesas?", questiona o responsável, que não acredita na garantia do ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações de que as áreas que forem "utilizadas como fonte de especulação" retornarão ao domínio público do Estado.
O presidente da comunidade, que reúne 11 associações do sector portuário, diz que não é "fundamentalista" em relação à possibilidade de alguns terrenos sob jurisdição da Administração do Porto de Lisboa (APL) passarem para o domínio da autarquia, mas contesta que tal seja feito sem encargos financeiros. "Se o dinheiro vai para a administração portuária ou para o Governo não sei, mas não estamos de acordo que as transacções sejam a custo zero, mesmo nos terrenos que não tenham benfeitorias", defende o responsável.
João Carvalho, que ainda não teve acesso ao decreto-lei aprovado anteontem em Conselho de Ministros, está também preocupado com a possibilidade de a definição que foi feita daquilo que é actividade portuária não ter em conta a necessidade de salvaguardar as "acessibilidades" às áreas em que se desenvolve essa actividade. O responsável questiona ainda se a identificação dos terrenos que vão continuar sob jurisdição da APL contempla "zonas de reserva", para responder a uma possível necessidade de crescimento da actividade portuária.
O presidente da Comunidade Portuária de Lisboa defende que a APL, como as restantes administrações portuárias do país, tem sido "um garante de que não há usos e abusos de construção" na frente ribeirinha, preservando-a da especulação imobiliária. Segundo João Carvalho, os muito contestados projectos do hotel na Doca do Bom Sucesso e das sedes da Agência Europeia de Segurança Marítima e do Observatório Europeu de Droga e Toxicodependência no Cais do Sodré "foram imposições do Governo".
O PÚBLICO contactou a Câmara de Lisboa e a APL, que não se mostraram disponíveis para prestar esclarecimentos sobre esta matéria.
A Administração do Porto de Lisboa tem sob sua jurisdição 19 quilómetros de frente ribeirinha no concelho de Lisboa, dos quais apenas oito estão actualmente consagrados à actividade portuária. Segundo o presidente da Comunidade Portuária de Lisboa, João Carvalho, essa actividade desenvolve-se em Alcântara, Santa Apolónia, no estaleiro naval da Rocha Conde d"Óbidos, nos docas de recreio do Bom Sucesso, Belém, Santo Amaro e Alcântara e nos terminais dos passageiros dos cruzeiros e da Transtejo.»
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1 comentário:
Esta importante medida de desmaritimização resulta ao que tudo indica de uma luta política que se verifica desde há algum tempo em torno de sectores da Sociedade Civil pouco familiarizados com as actividades do Mar, que sonharão talvez com o ajardinamento das margens do Tejo. Serão incentivados discretamente por um poderoso "lobby" civil mas da construção, que muito teria a ganhar com o referido ajardinamento mas em betão, que coisas de botânica não contribuem para o crescimento do PIB....
Desde há algumas décadas Portugal tem vindo a sofrer um processo de desmaritimização gradual mas efectivo, com o quase desaparecimento da Marinha Mercante, Comércio e Pesca, da Indústria Naval, muito reduzida no que toca à construção e igualmente diminuída na capacidade de reparação, e a falta de políticas portuárias complementares de uma estratégia portuária nacional efectiva. Vive-se uma fase da nossa história em que cada vez mais o Mar acaba na praia. Apesar de discursos oficiais diversos acerca das virtudes marítimas no futuro, nada se tem feito de efectivo, e é triste verificar-se a cedência a interesses manifestamente contrários ao Mar neste caso Municípios - Portos. Sendo notória a tradição de ineficiência suspeita que caracteriza a vida autárquica, grande responsável pelo caos de ordenamento do território, e profundo desequilíbrio urbano, a medida agora anunciada não augura nada de bom. Esperemos que esta disposição governamental não seja para cumprir na prática, como tantas vezes acontece entre nós. Ou então que quem de direito assuma o Mar Tenebroso e se acabem as quimeras marinheiras em Portugal...
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