Por Marisa Soares
O projecto Re-Food nasceu numa das zonas nobres de Lisboa,
onde a carência alimentar se esconde atrás das aparências. Cerca de 50
voluntários estão a lutar contra o desperdício e querem chegar a toda a cidade.
No "centro de operações" chamam-lhe Maria
Clandestina. É como um código. O seu nome verdadeiro está escrito no post-it
amarelo colado ao saco cheio de embalagens com comida. São quase 21h. Hunter
Halder pega no saco e vai a pé até ao prédio onde ela mora. Já lá está o
alguidar, com o saco de embalagens vazias, do dia anterior. A troca dos sacos é
feita discretamente, num local escondido, em poucos segundos. A mulher, com os
seus 80 anos, vai buscar a "encomenda" mais tarde. O ritual, que
parece uma operação secreta, repete-se todas as noites.
A cena até poderia passar-se num bairro pobre de Lisboa, mas
não. Maria Clandestina mora na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, nas
Avenidas Novas, uma das zonas nobres da capital. O salário que recebe como
porteira não chega para pôr o jantar na mesa todos os dias, mas a vergonha da
pobreza é quase maior do que a fome. "Disse-me que precisava de ajuda, mas
não queria que os vizinhos soubessem. Preferia morrer", conta Hunter.
"Aqui há muita fome envergonhada", lamenta o
consultor norte-americano de 60 anos, a viver há 20 em Lisboa. Inspirado pela
campanha do piloto António Costa Pereira, que há um ano lançou uma petição
contra o desperdício alimentar, Hunter pôs mãos à obra e montou, com a ajuda do
filho Christopher Halder, uma "operação de resgate de comida",
assente em duas evidências: todos os restaurantes têm sobras, comida boa que
normalmente vai para o lixo, e há cada vez mais pessoas carenciadas, a quem o
desemprego bateu à porta ou cujo salário não chega para comer. "Só é
preciso que alguém faça a ponte entre as duas realidades."
Desde Março que Hunter está a construir essa ponte, através
da Re-Food 4 Good, a associação que criou para pôr no terreno o projecto
Re-Food (diminutivo para rescuing good food, ou seja, salvar comida boa). Hoje,
o projecto é "alimentado" por cerca de 50 voluntários. Todos
trabalham por uma causa: combater o desperdício alimentar e matar a "fome
urbana". Estão a fazê-lo, para já, numa zona piloto com sete quarteirões
na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, onde identificaram perto de 70 pessoas
carenciadas. Em seis meses distribuíram - de bicicleta sempre que possível
-mais de seis mil refeições doadas por 31 restaurantes, cafés, cafetarias e pastelarias
daquela área.
O objectivo é alargar o projecto a outras zonas da cidade e
transformar Lisboa na "primeira cidade sem desperdício alimentar". Os
21 mil euros que receberam do Prémio Voluntariado Jovem Montepio (eram 25 mil,
mas distribuíram 1000 por cada um dos outros quatro finalistas), atribuído pela
Fundação Montepio e a Lusitania - Companhia de Seguros, vão ajudar no plano de
expansão.
Pesadelo da sopa entornada
José Viegas, de 54 anos, é quase sempre o primeiro
voluntário a chegar à antiga loja que serve de sede ao Re-Food - antes ficava
na cantina da Igreja de Nossa Senhora de Fátima e agora está temporariamente
instalada na Av. Conde de Valbom. A porta abre pouco antes de começar a
primeira recolha de comida nos estabelecimentos, das 19h às 20h, e só fecha lá
para a meia-noite, depois da distribuição e de outra ronda pelos restaurantes,
das 22h às 23h. José fica até ao fim, enérgico como se estivesse a começar o
dia. Mas o trabalho dele começou cedo, ao almoço, no quiosque ao lado da igreja.
"Faço comida para os sem-abrigo. Costumam ser uns 30, mas hoje apareceram
50. Só aqui na freguesia, há 100."
No pequeno espaço da sede as prateleiras estão repletas de
sacos e embalagens de plástico, vazias ou cheias de sopa, bem tapadas.
"Sopa entornada é o nosso pior pesadelo", diz Hunter, lembrando as
vezes que entornou sopa na bicicleta que usa para fazer a recolha nos
restaurantes mais afastados. A bicicleta é mesmo a imagem de marca do Re-Food.
Tem um cesto forrado a plástico amarelo instalado à frente e outro atrás. No
início, foi a pedalar que Hunter promoveu a ideia. "As pessoas ficavam
curiosas ao ver um homem com um chapéu de palha na cabeça, a conduzir uma
bicicleta com dois cestos cheios de sacos", conta, a rir. Alguns curiosos
tornaram-se voluntários, como o senhor Lemos, de 74 anos, que empresta o carro
para a distribuição nos bairros mais distantes.A recolha começa a pé. Hunter
vai até ao primeiro restaurante. Entra pela porta dos fundos que vai dar à
cozinha e logo uma das funcionárias, Maria de Jesus, pega nas caixas que já pôs
de lado. Três embalagens de sopa, quatro com arroz, peixe e carne, salada.
"Para nós é um alívio. Deitávamos muita coisa fora, porque a crise toca a
todos e já tivemos mais freguesia", lamenta. O desabafo vai-se repetindo
durante a recolha, à qual se junta Catarina, outra voluntária, de 16 anos. São
precisas quatro mãos, há comida para levar em todos os estabelecimentos.
A tarefa seguinte é encher os sacos, verdadeiros cabazes
alimentares adaptados a cada família, com sopa, prato principal, fruta e pão ou
bolos. José já nem olha para a tabela onde estão escritas as preferências de
cada "cliente". Sabe-as de cor. "A Ana Paula não gosta de
bacalhau, fica com borbulhas na cara. Outra é diabética. Outra não quer
fritos."
O carro do senhor Lemos, que arranca com a mala cheia por
volta das 20h15, vai até ao Bairro de Santos. No caminho, o rádio debita o jogo
entre o Manchester United e o Benfica, clube pelo qual torce Catarina. Não
preferia estar a ver o jogo? "É mais importante levar comida a estas
pessoas que não têm nada. Ainda não veio aqui, pois não? Já vai perceber."
O carro pára ao pé da Escola Primária n.º 44, onde espera meia dúzia de
mulheres com crianças pela mão. Aproximam-se, fazem fila, algumas queixam-se do
jantar da véspera. "Vocês não têm culpa, mas é só para avisar", diz
uma delas - cabelo apanhado, bem vestida, cigarro na mão - falando da sopa que
chegou azeda. Fábio, o filho de Ana Paula, de sete anos, já jantou, mas ela
não. Depois de uns minutos de conversa, vai para casa com o saco cheio e um
"até amanhã".
São 21h. No Bairro do Rego está um casal de idosos que ainda
não jantou. Os voluntários sobem ao primeiro andar do prédio sem luz nas
escadas - os interruptores foram arrancados das paredes sujas. A mulher abre a
porta e Hunter deixa o saco da comida na cozinha. A visita é rápida, ainda há
mais uma paragem a fazer.
À espera está um casal com três crianças que antes bebiam
água com açúcar ao jantar.
3 comentários:
Excelente iniciativa! Parabéns!!
Gostaria de saber se a esfomeada que apareceu a fumar cravou o cigarro ou comprou-o. É que se não têm dinheiro para comprar comida mas têem para cigarros...
Ao pé da minha casa tambem há uma mulher que todas as noites chega de carro ao Pingo Doce para vasculhar os caixotes. Já fiquei a pensar se ela mora assim tão perto que compense pagar gasolina para poupar na comida.
Aqui está a prova que quem poupa nos luxos para gastar no básico é idiota. O básico consegue-se de forma gratuita e os luxos ninguem os oferece.
Nas zonas finas de Lisboa é assim e depois Chelas é que tem a fama...é e há de ser sempre assim, uns com o proveito e outros com a fama.
Enviar um comentário