24/02/2013

Não os vemos e vemo-los por todo o lado mas é como se eles não existissem



In Público (23/2/2013)
Por José António Cerejo

«O que admira é que o charco escuro de águas paradas não tresande. Ali tudo é lixo, detritos sem nome, trapos encharcados, lama, restos de fogueiras, fezes. E barracas, muitas barracas de canas e cartão — as de lata dos bidonvilles portugueses dos anos 1960 eram uma extravagância parisiense, impensável sob este viaduto de Sete Rios, Lisboa, ao princípio da tarde de ontem. A mulher jovem que lá está sozinha, de guarda e de faxina, ajeita uma pedaço de dois palmos de carne vermelha e barata em cima de uma pedra. Os paus acesos no chão, no meio de toda aquela desolação, nem parece darem fogo, muito menos calor. A rapariga, vestida de cores garridas até aos pés, ergue-se, entre assustada e impotente. Sorri a medo, gesticula para afastar a objectiva do fotógrafo, mas tranquiliza-se com duas palavras: “Não polícia!” E responde: “Romani, romani...”, a apontar para o peito.

Aparentemente não percebe mais nada. Fica ali, imóvel, de pé, sem saber o que fazer. À frente tem o charco que envolve um pequeno núcleo de barracas coladas aos grafitti de um pilar do viaduto. Por trás dela alinham-se trinta a quarenta barracas quase todas iguais: meia dúzia de canas espetadas no chão e outras tantas na horizontal, presas às primeiras com atilhos, formam a estrutura; as parede e os tectos, a um metro do solo, são feitos de cartões e panos. Lá dentro cabem duas ou três pessoas, ou mais, se amontoadas. Cuecas de crianças entre o lixo fazem pensar que não são só adultos quem ali vegeta.

Fora a rapariga pasmada não há mais ninguém. Os outros, 60?, 100?, andam a fazer pela vida. Logo ali, em Sete Rios, nos acessos ao Eixo Norte-Sul que lhes dá abrigo, onde esmolam nos cruzamentos e tentam vender o Borda d’Água. Mais longe, elas ruas da cidade, a fazer o mesmo ou outra coisa qualquer, mas sempre com escasso proveito, a avaliar pelo que se vê à beira do charco. Já no centro de Lisboa, a pouco mais de cem metros da Câmara de Lisboa, não há ramais rodoviários, povoados de carros a grande velocidade a separar a terra dos outros da terra deles. Estão ali à vista de nós todos, a entrar pelas janelas dos autocarros, pelas narinas de quem vai a pé, pelo pára-brisas do automóvel de António Costa.

Mas o cenário, em escala reduzida, é igualmente degradante: barracas de cartão, outras armadas com materiais da obra municipal da Ribeira das Naus, um triângulo de terra devastado que já foi um pedaço de jardim, encostado ao parque de estacionamento da EMEL do Corpo Santo, e três árvores que não os escondem, nem às suas fogueiras, nem à sua intimidade.

Às vezes, dizem os vizinhos, os humores azedam e há gritos e polícias. No sábado, a Polícia Municipal esteve lá mais uma vez. Muitos desapareceram, mas vão voltar, como acontece há anos. Os seus parcos haveres, amassados em sacos de plástico, ficam escondidos numa galeria subterrânea, feita para cabos de telecomunicações, com tampa no passeio.[...]»

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