09/08/2010

Indo eu. Vivência multimodal completa

In Público (9/8/2010)
Por Ricardo Garcia

«Podia ter sido um embarque perfeito. E de certa forma o foi. Eu tinha parado o carro perto da estação, faltavam quatro minutos para o comboio passar. Cumpri a distância até ao cais em modo militar, a toque de marcha. Desprovido de passe naquele mês, fui à máquina carregar um dos 15 cartões que mantenho de reserva em casa, para atender à estimulante complexidade do sistema de bilhetes dos transportes de Lisboa.

Quando o comboio apitou antes de emergir da última curva, eu ainda lutava com a ranhura da máquina, na qual metia sucessivas moedas para uma viagem ao Cais do Sodré. Completei o montante no exacto momento em que o comboio apitava novamente, mas desta vez para partir da estação. Saltei lá para dentro, plenamente satisfeito por ter embarcado sem um segundo de espera.

Assim que as portas se fecharam e a composição se pôs em andamento, deu-me, porém, a neura. "A minha carteira!", pensei, alarmado, enquanto me apalpava à procura da dita cuja.

Devo esclarecer, a título de cultura inútil, que "minha carteira" é um eufemismo para um amontoado avulso de cartões de plástico que levo no bolso da camisa. O BI, carrego-o sempre nas calças, junto à nádega direita, de quem o referido documento já tomou a forma.

Encontrei o BI no seu nicho glúteo, mas nada dos cartões. "Ou ficaram em casa, ou os deixei no carro, ou caíram na estação", raciocinei. Acto contínuo, quedei mentalmente paralisado, em profundo dilema: "Sigo ou volto?" Passados alguns minutos, acordado por um neurónio rebelde, decidi regressar ao ponto de partida e pulei in extremis para fora da carruagem, na estação seguinte. Era melhor assim.

Ledo engano... Esperei meia hora por um comboio. Nada. "É o terceiro que falha", disse outro putativo passageiro. O principal refúgio informativo, a bilheteira, tinha acabado de encerrar para um interlúdio de três horas - para almoço e lanche, presumo. A caminho do repasto, um funcionário ainda me esclareceu: "A linha está cortada."

Procedi a uma análise expedita da situação: não havia comboios num dos sentidos; o meu carro tinha ficado na estação anterior; não vislumbrava nem táxis nem autocarros. Só me restava uma opção: regressar a pé ao ponto de partida. Foi assim que, embora com bilhete validado para ir para Lisboa, dei por mim a andar na marginal, na direcção oposta, sob um sol de rachar coco.

Não é preciso dizer que, meia hora depois e um minuto antes de chegar à estação inicial, já semidesidratado, passou um comboio. Fui directo para o carro, onde de facto encontrei, dentro de uma mochila, os cartões que não me fariam falta nenhuma naquele dia. "Bom, agora é apanhar de novo o comboio para Lisboa", pensei, resignado a pagar uma viagem extra.

Mais uma vez, negligenciei os ensinamentos de Murphy e fui vítima da minha própria ingenuidade. Na estação, agora o problema era no outro sentido, algo que facilmente se constatava pela mole humana aglomerada na cais, à espera de um comboio para Lisboa.

Segundo conversas públicas captadas entre a multidão, o obstáculo, seja lá qual fosse, não tinha hora prevista de solução.

Cedi à evidência do fracasso. Retornei ao carro, com o qual segui afinal para Lisboa, onde cheguei após uma vivência multimodal completa: para a frente e para trás, de comboio, de automóvel e a pé.»

3 comentários:

Nuno disse...

Lamento a situação mas já agora pergunto quantos posts dedicados a engarrafamentos, acidentes, e outros constrangimentos típicos de viagens de carro já foram feitos neste blog?
Costumo andar de combóio e na quase totalidade das viagens o combóio parte à hora e chega à hora marcada, ou seja é muito mais previsível que o automóvel particular.
De carro será que era garantida a fluídez do trânsito? O estacionamento à chegada? O funcionamento do automóvel?

Jose S. Clara disse...

Fabulosa prosa...

Rui Ferreira disse...

Eram cerca das 7:40 da manhã em Vila Franca de Xira. Dirijo-me à estação antes da hora. Como faltam ainda 20 minutos fico à espera no belo jardim da cidade pelo hora do comboio. Os minutos passam alegremente a olhar o rio Tejo. Escuto a voz a indicar que o comboio se aproxima. Entro nelo e as portas rapidamente se fecham. Existem amplas opções de lugares à janela. Os minutos passam e eu vou a ler um bom livro durante 45 minutos.

Dou o meu passe combinado de 30 dias da CP/L ao revisor para ele fazer check-in. Sorrio ao recordar que fiz o carregamento do mesmo no Multibanco vários dias antes.

O comboio chega a horas, a 7 Rios, são e salvo, mais instruído e com boa utilização do tempo.

Obrigado CP por funcionar 97% das vezes.