11/06/2012
Cartas à Directora
Hoje no Público
Prezado Fonseca e Costa
Soube que inaugurou as Festas da Cidade à porta de sua casa, no Bairro Alto, com uma cena de acção na pele da personagem retalhada por uma navalha de degola. Tudo a troco de uns euros da sua carteira. Soube também de um jovem que, sentado na Praça Luís de Camões, na sua vizinhança, lhe tiraram o telemóvel das mãos, interrompendo-lhe um SMS. Ao levantar a cabeça para o vulto na sua frente, foi anavalhado na jugular num gesto de potestade para a plateia que acompanhava a rapina. Tudo a troco de um telemóvel.
No Verão de 2010, passei às 22h30 na Rua de São Boaventura, perto de sua casa. Frente à porta do restaurante El Gordo, fui abordado por um vulto que me pediu "um cigarro". Uma plateia de mais vultos na esquina do restaurante, assistindo. Senti um puxão na alça da mala do computador que levava ao ombro e que não larguei. Imagine agora mais esta cena de acção, alguns gritos e a navalha volteando. O fecho da alça soltou-se e tombei como os vencidos, sangrando da nuca. Atordoado, vi dois vultos em fuga (há sempre um assistente nestas filmagens) e a esquina ficou deserta.
De pronto, se abriram várias portas surgindo uma multidão de moradores prestimosos com toalhas, algodão, água oxigenada, para me socorrerem. Sabiam todos de tudo, mas moram lá, têm família, generosidade para as vítimas e medo das represálias. Assistiram a tudo espreitando pelas cortinas, escutando atrás das portas fechadas. Veio a polícia, da esquadra situada a 200 metros, outros tantos da sua porta, onde o espancaram já caído no passeio. No carro da PSP, percorremos o bairro, animadíssimo com a movida louvada pela autarquia, embora um agente me avisasse que nada poderia fazer caso não tivesse o agressor objectos do roubo na sua posse. E nunca os têm, pois são largados numa escada onde os cúmplices seleccionam a colheita, como bem sabe.
Os agentes indicaram-me com profissionalismo onde pairam estes vultos (algumas esquinas do bairro e o Miradouro do Alto de Sta. Catarina), informação que confirmei dias mais tarde. Os agentes tiveram ainda a bondade de me explicar quais seriam os passos seguintes a esta identificação: mais um processo burocrático de registo policial, impossibilidade de detenção por não haver flagrante delito, uma longínqua sessão num tribunal, uma eventual pena suspensa, e as represálias, desde o início do processo, sobre toda a minha família. Dirigi-me à Polícia Judiciária onde o piquete de serviço me facultou o acesso aos ficheiros dos vultos já fotografados, com a sensata pergunta prévia "e tem a família em Lisboa?".
Fui suturado no Hospital de São José, tendo na mesa operatória ao meu lado uma turista francesa com a mão idosa retalhada, tendões seccionados, num golpe súbito de navalha: a forma expedita de logo se largar a mala de mão talvez com telemóvel, talvez com alguns euros.
Inaugurou portanto as Festas da Cidade. Os vultos esperam-nos às esquinas, avisados por telemóvel do nosso trajecto de vítimas e da ausência de polícia nas redondezas da ratoeira. O medo escuta atrás das portas. Na esquadra explicar-nos-ão como decorrerá o pesadelo que se segue ao golpe da navalha.
Um abraço,
Mário Ferreira, Lisboa
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